São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 1996
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A tarefa transcedental do suspensório

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Tinha de chegar a minha vez: sempre embirrei com os suspensórios. Talvez pela semelhança do nome, na minha cabeça houve época em que suspensórios e supositórios, se não eram a mesma coisa, deviam ter funções parecidas. Daí meu espanto quando fui apresentado ao Nelson Rodrigues, na virada dos anos 60. Ele era o único cidadão do universo que, na época, usava suspensórios.
A birra foi recíproca. Apesar de apreciar-lhe a obra, detestei os suspensórios que ele usava para segurar umas calças larguíssimas e amassadas. Por sua vez, ele me detestou em bloco, e o admitiu em crônica. Segundo ele, eu emanava uma pestilência fatal -e nessa pestilência ele incluía o fato de eu ter seduzido seu irmão Mário, que chegou a me ajudar a empurrar meu Simca Chambord no estacionamento do Maracanã.
Mário sofria do coração (morreu de repente, sem aviso prévio), foi um escândalo presenciado pela turma da tribuna de honra do estádio: o homem que daria seu nome ao próprio estádio, cabelos de fogo, charuto na boca, empurrando o meu carro que se recusava a pegar. Essas coisas não se esquecem. Pelo menos, nem o Nelson se esqueceu nem eu. Cada qual teve o seu motivo.
Pois o Nelson me abominava, e eu abominava os suspensórios dele. Foi com espanto, como se recebesse uma punhalada do destino, que de repente comecei a perceber que outras pessoas também começavam a usar suspensórios.
Uma tarde, José Lewgoy invadiu a redação da revista de moda que eu editava. Ele havia chegado de Paris e trazia uma coleção de suspensórios, tudo de boa grife, queria que eu fizesse matéria sobre a volta dos suspensórios, ele se prontificava a posar para as fotos sem cobrar cachê.
O Lewgoy não me convenceu, mas convenceu o Justino Martins, que editava outra revista e topou a matéria. De qualquer forma, o dono da empresa, que era o Adolpho Bloch, espinafrou o Justino, odiou a matéria e declarou-se a meu lado, detestando igualmente os suspensórios.
Passou o tempo, um dia o Adolpho adentra a redação com suspensórios. Mais uma punhalada do destino, eu me sentia traído, mais isolado do que o Robinson Crusoe na ilha deserta e sem radinho de pilha -para usar uma imagem do Nelson Rodrigues.
Que afinal tornou-se meu amigo e, quando Mário morreu, promoveu-me a irmão -fazendo por sinal uma bela crônica que guardo com carinho.
Mas continuei a detestar-lhe os suspensórios. E o dizia francamente, embora reconhecesse que a moléstia ia grassando, uma Aids nefanda que para mim dividia o universo entre sadios e infectados: Nelson era um soropositivo da moda. Ele ria. Ria e dizia como o Mário, imitando a entonação carinhosa do irmão: "O Cony...o Cony...".
Bem, ao longo da vida, ao moer dos anos, fui fazendo concessões, algumas inocentes, outras nem tanto, mas tinha um secreto orgulho ao fato de nunca ter me dobrado aos suspensórios.
Cheguei a admitir que o Flamengo, em certas ocasiões, tinha mais carisma do que o Fluminense. Mudei de opinião a respeito de Brizola -que eu considerava responsável pelo movimento militar de 64. Deixei de gostar de coisas sagradas -como os prelúdios de Debussy gravados por Robert Cassadessus- e passei a amar coisas que desprezava, como mulheres de óculos e pizzas de alho e óleo.
Fidelidade, mesmo, só a Santo Antônio e ao ódio aos suspensórios. Até que, em recente viagem, deu-se que só levei um cinto no corpo e nenhum na mala. E que esse único, em dado ponto da caminhada, como o bordão do peregrino fatigado, partiu-se em dois, e as duas metades não davam para cumprir sua tarefa -que afinal é transcendental. Pior do que um homem sem calças é um homem com as calças caindo. Eu estava em Rodes, terra do colosso. E me dispensei de dar um colossal vexame.
Na primeira loja em que entrei não havia cintos à venda, mas suspensórios que o vendedor, um grego de Smirna, terra de bons figos, garantiu-me que eram excelentes, tão ou mais do que os próprios figos, que universalmente são tidos como excelentes.
Os suspensórios podiam ser ruins, mas o vendedor era também excelente, tão excelente que me vendeu três suspensórios, embora eu não tenha o hábito de andar com mais de uma calça de cada vez.
Como qualquer brasileiro no exterior, a gente faz pequeninas coisas que não ousa fazer no dia-a-dia da pátria. Não havia nenhum vizinho, amigo ou desafeto para me gozar, e saí da loja já ornamentado com uns suspensórios vermelhos e azuis, que deviam me dar o ar de um gangster da Chicago dos anos 30 e dos filmes do James Cagney.
O pensamento me levou à Escola de Chicago, que, volta e meia, como os suspensórios, também entra na moda. Como não entendo de economia nem de suspensórios, consolei-me em saber que mantinha as calças no lugar -façanha que qualquer homem tem empenho em praticar.
O primeiro tempo da partida terminou, estou no vestiário, poupando fôlego. E é no vestiário que enfrento o problema: entro em campo para o segundo tempo com ou sem suspensórios? A vida já me deu problemas, muitas perguntas sem resposta. Bem podia me ter dispensado dessa escrachante e imerecida dúvida.

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