São Paulo, sábado, 23 de novembro de 1996
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Estações para uma via-crúcis

RUBENS RICUPERO

A galeria de retratos da dor humana que formam a via-crúcis do nosso tempo se enriquece quase a cada momento de novas estações de padecimentos.
Após os instantâneos das atrocidades das guerras, os mortos-vivos dos campos de concentração, as vítimas inocentes do Holocausto, os calcinados pela explosão atômica em Hiroshima e Nagasaki ou pelo napalm no Vietnã, é agora a vez de a África contribuir para essa interminável sequência de fotos de horror que representam, melhor do que qualquer outro aspecto, a face martirizada deste século de torturas e massacres.
Foi primeiro a inesquecível madona da fome na Somália e na Etiópia, abraçando o filho agonizante. Vieram depois as cenas do genocídio, com as pilhas de cadáveres disformes e grotescos banalizando o mistério da iniquidade.
Nestes últimos dias, as telas da TV e as primeiras páginas dos jornais agridem nossa complacente indiferença com a poderosa imagem da corrente de centenas de milhares de hutus que, como um rio lento e caudaloso, carrega seus detritos humanos de volta a Ruanda.
O contraste não poderia ser mais trágico e desmistificador! De um lado, as promessas fáceis de segurança e prosperidade de uma globalização ingenuamente messiânica na espera de um futuro perfeito e tecnológico.
Do outro, páginas arrancadas do Antigo Testamento, de êxodos de povos de pés sangrentos, tangidos ontem pela opressão dos egípcios e dos assírios, hoje pelo terror dos compatriotas.
O avanço vagaroso dessa maré de gente que invade cada centímetro da estrada nos obriga a enfrentar, mesmo se apenas por alguns minutos, uma das realidades mais incômodas dos dias atuais: o fechamento das fronteiras e a recusa de acolher o estrangeiro.
Os refugiados em situação precária são mais de 20 milhões, e não faz muito assistíamos no noticiário às cenas desesperadoras do "boat people" fugindo do Vietnã ou do Haiti.
O problema da superpopulação, da pressão demográfica excessiva sobre recursos escassos, se encontra com frequência na raiz do agravamento das condições em países como Ruanda, Burundi ou Haiti. E, infelizmente, para esse problema não existe solução à vista.
Esse é, aliás, o principal aspecto no qual a etapa contemporânea da globalização em curso difere para pior da fase anterior, entre 1870 e 1914, o período áureo da Inglaterra vitoriana e da "belle époque" francesa.
Naquela época, a liberalização da economia mundial foi muito mais completa e coerente do que hoje, pois abrangia os dois fatores móveis da produção, o capital e o trabalho.
Nos 50 anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, 50 milhões de europeus imigraram -cerca de um oitavo da população do Velho Continente-, alcançando porcentagens entre 20% e 40% dos habitantes de alguns países (Reino Unido, incluindo Irlanda, Itália, Espanha e Portugal, por exemplo).
Muitos brasileiros, eu inclusive, somos o resultado dessa gigantesca transfusão de sangue, que permitiu, de um lado, aliviar a pressão demográfica que limitava a elevação do bem-estar na Europa, beneficiando, por outro, os países de acolhimento com a força de trabalho e a bagagem de competência desses imigrantes já treinados.
Durante o mesmo século 19, outros 50 milhões de pessoas haviam sido transferidas da China, Índia, Indonésia, como trabalhadores endividados para as colônias britânicas, francesas e holandesas na África e no Caribe, além dos milhões de escravos africanos importados nos anos finais do tráfico.
Tudo isso chegou ao fim com as políticas restritivas à imigração na Europa e agora nos Estados Unidos, que, até recentemente, eram os últimos a absorver mais de 800 mil imigrantes, legais ou ilegais, por ano -o que não deixa de ter algo a ver com a manutenção, há mais de duas décadas, dos salários americanos para trabalhadores não qualificados em níveis bastante baixos.
A verdade é que não existe nenhuma consistência ou lógica econômica em promover, como fazem os países ricos, a plena mobilidade do capital, dos investimentos e do comércio enquanto se reforçam as trancas e fechaduras para impedir a entrada das massas empobrecidas e desempregadas do resto do mundo.
Com efeito, o argumento em favor da globalização consiste em que, ao reduzir barreiras e unificar o espaço para a produção e o comércio, ela possibilita uma superior alocação de recursos e, em consequência, um acréscimo de prosperidade e de bem-estar.
Mas, para isso, é preciso abolir as restrições a todos os fatores da produção, sem excluir seletivamente a mobilidade da mão-de-obra. A prova de que a prática não tem justificativa econômica é que a União Européia exige dos membros não só liberdade de investir e comerciar, mas também de trabalhar.
Como se vê, não é apenas o coração, mas também a política que tem razões que a razão desconhece.

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