São Paulo, sábado, 23 de novembro de 1996
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Reforma se arrasta de Nabuco a Vereza

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Vejo nas folhas que o senador Eduardo Suplicy pediu a Benedito Ruy Barbosa, autor da novela "O Rei do Gado", que não deixasse de acompanhar pela televisão uma sessão do Senado que ia reunir representantes dos sem-terra, dos fazendeiros do Pontal (todos grileiros, acrescento por minha conta) e do governo.
A notícia não deixava claro se o senador Suplicy pretendia com esse apelo-convite que o autor da novela aprendesse alguma coisa, ouvindo gente de verdade a discutir problemas fundiários, ou se queria a opinião de Benedito sobre a "performance" de senadores, proprietários rurais e bóias-frias.
Há um paradoxo meio batido que diz que a vida imita a arte, e não o contrário. É possível que o senador Suplicy deseje que Benedito Ruy Barbosa se convença de que há senadores da vida real de fato interessados na reforma agrária, que é uma arte abstrata do Legislativo desde os tempos de Joaquim Nabuco. Por outras palavras, que há senadores que poderiam servir de modelo a Carlos Vereza, o senador Caxias de "O Rei do Gado". E torná-lo mais interessante.
O papel de Vereza é talvez o mais chato da novela. Não por causa dele, Vereza, que é excelente ator e que, além disso, é homem de consciência política. O difícil é aguentar que ele, no papel de senador idealista, seja tão ineficaz, tão incapaz de convencer quem quer que seja de que é possível que haja no Senado algum outro senador, além dele, capaz de querer resolver o problema da posse e ocupação da terra neste nosso país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
Ao lado da mulher chata, da filha quase deficiente mental, de uma namorada psicologicamente mal traçada, o defensor dos sem-terra é o campeão dos sem-charme. Sobretudo numa novela em que os papéis folhetinescos, entregues a Raul Cortez, Antonio Fagundes ou Sílvia Pfeifer, faíscam como num "thriller" cinematográfico.
Ou será que quem tem razão é Benedito Ruy Barbosa, ao sugerir, criando um senador chato, que nenhum brasileiro aguenta falar em reforma agrária? Já que ouve falar nela desde os tempos de Nabuco, Rebouças, Patrocínio. E até Ruy Barbosa.
Vereza é um senador em quem ninguém presta atenção, enquanto o Brasil vai mergulhando numa guerra cada dia mais clara dentro das cidades invadidas pelos que chamamos de traficantes e bandidos. São os sem-terra e filhos de sem-terra que fomos colocando na poupança das favelas desde as capitanias hereditárias e a Lei de Terras de 1850.
Eu, por exemplo, cansei de fazer reportagem sobre reforma agrária sem ver a implantação de plano nenhum. Acompanhei em pessoa o esforço das Ligas Camponesas em Pernambuco e acompanhei no Congresso a apresentação de sucessivos projetos de salvação nacional mediante uma revolução fundiária.
Ao folhear agora os livros referentes a leis que iam tornar nossa terra mais garrida e nossos bosques mais cheios de vida, de acordo com propostas feitas durante o último período Vargas e até o fim da ditadura militar, vejo-me diante de volumes de planos que jamais saíram do papel. O Brasil rural não mudou nada, desde a Abolição.
Parei de acreditar em qualquer êxito de uma reforma entre nós nos anos 50 e 60. Porque o que houve, naquele tempo, de projetos de lei que não iam adiante, é coisa espantosa em qualquer país do mundo.
Os projetos tanto vinham de deputados um tanto maníacos da reforma inatingível, como o baiano Nestor Duarte, como vinham de Josué de Castro, Afonso Arinos, Prado Kelly, Milton Campos.
Como não havia recursos para a "indenização prévia, justa e em dinheiro" encravada na Constituição de 1946 para qualquer desapropriação de terra, os projetos eram como os do senador Vereza. Não resultavam em nada. Nem no Estado mais organizado e rico do país, São Paulo.
Vejo, no "Rei do Gado", a violência que cerca os sem-terra no Pontal do Paranapanema e lembro que lá estive, como repórter, durante o governo Montoro. A única diferença que noto, assistindo à novela, é que, agora, nunca aparecem jornalistas por ali. Só se prenderem Diolinda, com seu filho pequeno. Os repórteres de hoje já sabem que não sai reforma nenhuma. Ficam na redação mesmo, no telefone, no computador.
Outro dia (7.10.96) saiu à página 3 desta Folha um artigo assinado por Roosevelt Roque dos Santos, pecuarista, advogado, presidente da União Democrática Rural em Presidente Prudente, na região do Pontal.
O sr. Roosevelt proclama, como um cavaleiro medieval anunciando duelos e combates singulares, que a UDR, desativada em 1994, volta à sua atividade guerreira porque, diz ele, "os agitadores dos anos 60 estão de volta, encastelados no poder. A região do Pontal do Paranapanema foi totalmente desestabilizada.(...) Tudo mercê da situação política irresponsável do governador Mario Covas. (...) Para conseguir seus objetivos passou a contar como parceiros os invasores de terras do MST. Proprietários rurais, denominados 'grileiros' por homens do governo do Estado, são chamados para entregar suas terras recebendo indenizações irrisórias".
Por isso, "no dia 12 de setembro último, a classe produtora rural da região uniu-se em assembléia e decidiu reativar a UDR".
O artigo do sr. Roosevelt acaba alertando os governos federal e estadual para que respeitem as leis vigentes "a fim de que a democracia brasileira seja preservada enquanto é tempo".
No dia em que escrevo esta coluna, 19 de novembro de 1996, a manchete da Folha que tenho em mãos diz: "Sobe imposto para terra improdutiva". E esclarece na notícia que segue: "O governo envia hoje ao Congresso a reformulação do Imposto Territorial Rural, que prevê aumento médio de 300%.(...) Com o aumento, proprietários serão forçados a produzir, vender ou arrendar terras para torná-las produtivas, diz Raul Jungmann".
Pego a esmo, entre velhos livros sobre o assunto, um intitulado "Reforma Agrária para o Brasil" (1965), de Ben-Hur Raposo, e vejo como a extrema direita e o centro respeitável se dispunham a resolver para sempre o problema.
O projeto nº 277, de 1963, de Plínio Salgado, "dispunha sobre nova estrutura agropecuária do país" e, concomitante, um projeto do deputado Aniz Badra, "dispondo sobre a Reforma Agrária, a desapropriação, a redistribuição e o uso da terra", era recebido com aplausos, pois apenas ampliava um projeto de Milton Campos. Era a "solução do grave problema". Não foi solução nenhuma. Não mudou nada. Ninguém se lembra mais do que era então proposto.
Aposto que as valentes intenções de agora sobre a Reformulação do Imposto Territorial não se concretizarão nunca e acabarão num outro livro, de 1997, sobre "Reforma Agrária para o Brasil". A menos que o Brasil entre em guerra com os Estados Unidos e que, perdida a guerra, os Estados Unidos façam aqui a reforma agrária, como fizeram no Japão.

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