São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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O Brasil do século 21

PAULO MALUF

Neoliberalismo, social-democracia, trabalhismo ou socialismo. Até o final dos anos 80, esses conceitos ainda faziam algum sentido quando tomados isoladamente, como projetos sociais e econômicos autônomos que um partido poderia defender e coerentemente aplicar por meio de políticas concretas de governo.
Assim, um governo liberal, levado ao extremo, deveria restringir as ações do Estado à segurança nacional e à defesa dos contratos, deixando tudo o mais, inclusive os serviços sociais, por conta dos particulares, que tudo resolveriam por meio das relações livres de mercado. Onde esse liberalismo, ou ainda neoliberalismo, com reduzidas intervenções do Estado na economia, foi aplicado de acordo com a cartilha?
A resposta é fácil: em lugar nenhum. Basta lembrar que o governo de Margareth Thatcher caiu, na Inglaterra, por uma bizarra contradição com a doutrina liberal, que foi a criação da "poll tax". Nos EUA, mesmo durante os anos Reagan, nenhum serviço social foi desmontado, apesar da retórica em contrário do Partido Republicano.
Na Europa, os governos, sociais-democratas ou trabalhistas, tiveram que reconhecer a incompatibilidade do "welfare state" (Estado do bem-estar social) com as novas exigências de uma economia mais competitiva, que surgiu com a globalização e a formação da União Européia. O Estado que bancava tudo, "do nascimento à morte", como se dizia, por exemplo, na Suécia, teve que reformular suas políticas sociais. Ao mesmo tempo, nenhum governo europeu deixou de subsidiar fortemente sua agricultura, prejudicando ainda com barreiras protecionistas as exportações agrícolas de países como o Brasil. Chegou-se a estimar que uma vaca pastando na Europa tinha uma "renda per capita" (subsídio) superior a US$ 2.500, maior que a renda média de metade da humanidade.
Se a teoria, na prática, era outra no Primeiro Mundo, não foi diferente no "Segundo Mundo", que seriam os países socialistas. Basta mencionar a China, principal país a escapar da "débâcle" do comunismo, em função das reformas internas e da abertura de seu mercado aos capitais de toda e qualquer origem.
Esses exemplos nos conduzem à conclusão de que o formalismo teórico, a importação mecânica de modelos, a "ideologização" do governo hoje não são mais do que retórica. Na realidade brasileira isso significa que estatismo, privativismo, monetarismo e outros "ismos" podem responder apenas a parte de nosso problema econômico e social, mas não mais a seu conjunto.
Nesse sentido, minha posição diante dos desafios que o país enfrenta para chegar ao século 21 como nação independente e desenvolvida é a seguinte.
Creio na ação do Estado como única força capaz de promover a justiça social, a redução da iniquidade na distribuição da renda e a igualdade de oportunidades, porque o mercado livre cria riquezas, mas não as divide, e não se pode aceitar o "darwinismo social" de que só os mais aptos devem sobreviver.
Creio que o Estado é mau empresário e, portanto, deve se retirar das atividades produtivas, mas sem abdicar de seu papel de controle sobre nossas riquezas naturais, de controle efetivo e democrático do mercado financeiro, prevenindo os crimes contra a economia popular e não socorrendo bancos que vão à falência fraudulentamente.
Creio na privatização como forma de capitalizar o Estado para investir na infra-estrutura e em saúde, habitação e demais áreas sociais, como fizemos na cidade de São Paulo com a extinção da CMTC e a criação dos programas PAS e Cingapura. Não creio, porém, na criação de impostos casuísticos como a CPMF, que arranca mais recursos da sociedade para jogá-los fora no ralo da corrupção e da ineficiência.
Creio que o Brasil pode e deve se inserir de maneira autônoma na economia globalizada, mas defendendo sua indústria e o emprego de seus trabalhadores, precisamente ao contrário do que foi feito, quando abrimos nosso mercado sem qualquer negociação no âmbito da OMC e sem a contrapartida de outros países e mercados.
Creio na estabilidade econômica e da moeda. O combate à inflação não pode ser artificial, e a política de juros, transformando o país em paraíso do capital especulativo, não pode ser uma muleta para que o Brasil permaneça capenga, enquanto um governo fraco, dividido e egocêntrico procrastina as reformas que a sociedade reclama.
Creio, finalmente, na democracia como única forma de solução civilizada para os conflitos políticos e sociais e instrumento por meio do qual o povo decide os destinos da nação. Essa democracia, que foi exercitada nos últimos dias 3 de outubro e 15 de novembro, não pode se resumir a eleições, passadas as quais continuam os choques no campo, a violência impune nas cidades, as obras públicas abandonadas, as medidas provisórias obstruindo o debate no Congresso, a disputa política aviltada pelo fisiologismo e pelas ofensas pessoais.
Creio, sobretudo, que, no Brasil do próximo século e do próximo milênio, que estamos construindo agora, desaparecerá esse abismo entre povo e governo, entre palavras e atos, que caracterizou os quase cinco séculos do domínio oligárquico de que padecemos.

Paulo Salim Maluf, 65, é prefeito de São Paulo e presidente de honra do PPB. Foi deputado federal pelo PDS de São Paulo (1983-86), prefeito de São Paulo (1969-71) e governador do Estado de São Paulo (1979-82).

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