São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 1996
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Ninguém é de ferro

LUÍS PAULO ROSENBERG

Na lista de assinaturas do manifesto contrário à privatização da Vale do Rio Doce podem-se encontrar alguns fisiologistas, mais interessados em mantê-la sob o comando público apenas para tentar nomear seus afilhados como diretores dela.
Mas são poucos. Mau-caráter de carteirinha, por exemplo, não encontrei nem um sequer.
A quase totalidade dos signatários é de homens de bem, não de bens. Alguns até com a ingenuidade natural de adolescentes, apesar do avançado da idade. Não é exagero, portanto, ver no patriotismo de folha corrida o traço mais comum entre os defensores da Vale estatal.
E essa é a comprovação do nosso maior problema: só num país em que a elite intelectual é incapaz de entender a realidade pode-se passar 40 anos sem enfrentar a inflação, produzindo a pior concentração de renda do mundo industrializado.
Foi necessária a arrogância dos que crêem ser manifestação de consciência social explícita a preservação do Estado paternalista e interventor para que se pudesse ter montado a máquina insidiosa da indexação, corrigindo altas rendas e esmerilhando salários, até chegar-se ao absurdo dos 80% mais pobres controlando 20% do PIB, enquanto os 20% mais ricos apropriavam-se de 80% da riqueza gerada.
É fácil -até divertido, num regime democrático- desmascarar interesses paroquiais que tentam sobrepor-se ao bem comum.
A luta pela sobrevivência do Proálcool, por exemplo. O lobby deles, que já mudou a estigmatizante pecha de "usineiro" pelo mais respeitável "empresário do setor sucroalcooleiro", produz relatórios técnicos provando que o álcool polui menos do que a gasolina e não consome divisas, ou demonstrando cabalmente que a falta contratada de energia elétrica no futuro só poderá ser abortada se usarmos o bagaço da cana.
Basta o governo cobrar mais pelo combustível dos carros ou pela eletricidade das indústrias (se não quiser subsidiá-los diretamente pelo Tesouro) e zás: todos os nossos problemas energéticos estariam solucionados.
Taí: respeito esse tipo de pressão. Jogo aberto, limpo. Os usineiros dizendo "me dá um dinheiro aí" e nós com a opção de sermos trouxas ou não.
Outro exemplo: na discussão da proposta governamental de facultar ao empresário dar o suplemento à alimentação do trabalhador diretamente em dinheiro, o lobby do cartel dos tíquetes prevaleceu, convencendo liberais e lideranças sindicais a assumir o papel de otários. Novamente, parte do jogo.
Ou seja, é mais fácil lidar com um mesquinho lutando abertamente pelo seu do que enfrentar bem-intencionados desprovidos de sintaxe mental.
No documento, não há uma boa razão sequer para não se vender a Vale, além de saudosismo e estatismo genético.
Não privatizá-la por medo de que a doemos a algum grupo estrangeiro é bobagem. Haverá um leilão internacional, no qual as maiores raposas do mundo vão se digladiar pela posse do butim. Nesse sentido, o preço mínimo fixado é mero referencial.
Se a Vale realmente valer, sua venda far-se-á com ágio, como foi o caso da Cerj na semana passada, vendida 30% mais cara do que havia sido avaliada previamente.
Como ser contrário ao uso dos recursos de seu leilão para aliviar a venda de títulos públicos? Menor dívida pública permite reduzir juros e promover o emprego, a forma mais digna e eficiente de combater a pobreza.
Sei que é inútil, mas fica aqui registrada uma sugestão: circular pelos signatários do documento contra a privatização da Vale um manifesto de apoio à proposta da Receita Federal de impor tributação eficaz e progressiva sobre a terra, ora em tramitação no Congresso.
Eis um instrumento legítimo de afirmar a nacionalidade e a cidadania, fomentando a produção, diminuindo injustiças sociais e saneando as finanças públicas, tirando de quem tem.
Mas, aí, precisa ter tutano para enfrentar o temível lobby rural. E, convenhamos, é muito mais confortável ser patriota aliando-se ao corporativismo estatal do que indo para o pau com o maior e mais bem organizado contingente de parlamentares do Brasil.

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