São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 1996
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Fábrica de cadáveres

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Para começar, proponho um esforço de memória. Traga para a superfície da mente a tragédia do vôo 402 da TAM.
Não há de ser difícil. As imagens remanescem frescas. Roçam, em cores vivas, o topo do cérebro. Esqueça, por irrelevantes, os detalhes. Para a comparação que se fará mais abaixo, o reverso da turbina, as frases do piloto, importam pouco.
Os corpos. É neles que desejamos focar o interesse. É como se ainda estivessem lá, estirados no asfalto, embrulhados em saco preto. O sangue escorrendo à farta pela quina da rua. Um odor espesso invadindo o nariz. Um cheiro de morte.
Pronto. Estamos de volta à cena de horror. Morreram 98.
Proponho agora um macabro exercício de imaginação. Imagine 40 acidentes como o da TAM. Insisto: 40! Na ponta do lápis: 98 x 40 = 3.920. Sim, 3.920 mortes. Alucinação?
Não. Aconteceu aqui mesmo, no Brasil. Ano passado, os acidentes de trabalho mataram 3.967 pessoas. Temos aí os 40 acidentes da TAM. E ainda nos sobram 47 cadáveres. Há mais: os acidentes de trabalho, quando não matam, aleijam.
Em 95, nada menos que 15.156 pessoas ficaram definitivamente incapacitadas para o trabalho. A estes é reservada a sina de sobreviver com pensões miúdas do INSS.
Os números evocam um mistério: por que só os cadáveres da TAM nos sensibilizam? Por que não choramos pelos corpos que tombam sobre máquinas, que despencam de andaimes?
Talvez porque eles não voem de avião. Frequentam o andar de baixo da sociedade. Um andar para o qual não temos olhos.
No último dia 11 de novembro, reuniram-se em Sergipe agentes de inspeção de trabalho. Divulgaram a "Carta de Aracaju", um "grito de dor".
O texto utiliza imagens fortes. Imagens que, de fato, berram: "Imagine o Maracanã lotado. Multiplique por quatro. O número de acidentados em 95 ficou por aí.". Somos mesmo um bando de cegos.

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