São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 1996 |
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Uma janela para a maldade
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. Os adversários da reeleição vêm dando demonstrações de enorme insensibilidade humana. Não reconhecem que não há nada mais triste, nada mais desolador do que a condição de ex-presidente. A falta de compreensão para esse fato elementar empobrece o debate.Um parêntese. Não sei se vocês perceberam o meu feito recente: consegui atravessar duas semanas sem citar Nelson Rodrigues. Acumulei crédito para voltar a citá-lo abundantemente hoje. Bem, Nelson Rodrigues é um dos maiores filósofos da alma brasileira. Não se entende o Brasil sem mergulhar na sua obra. E o que dizia ele sobre a questão da reeleição? Sobre a reeleição, propriamente, nada. Há 20 ou 30 anos, ninguém falava sobre o assunto. Até a ditadura militar garantia o rodízio na presidência. Mas Nelson tinha uma clara percepção do sofrimento do ex-presidente. Segundo ele, o ex-presidente adquire instantaneamente a miserabilidade de um barnabé. Mesmo um Juscelino, apeado da presidência, assume logo um ar indubitável de museu de cera. Façam um esforço. Imaginem a profunda melancolia, mais do que isso, a humilhação do sujeito que entrega a presidência a outro. Se há uma coisa que não acaba, dizia Nelson Rodrigues, é o idílio apaixonado com a autoridade, a lua-de-mel com o poder. Entre as vantagens inestimáveis do poder, está a de quase só receber elogios e notícias boas. Assessores e visitas se acotovelam na ânsia de oferecer perspectivas róseas. As poucas notícias ruins vêm envoltas na mais densa névoa de cuidados e ressalvas. Quem resiste a isso? Ninguém resiste. O sujeito começa a se julgar um gênio, um predestinado. Outras formas de poder produzem fenômenos semelhantes. Nelson Rodrigues conta que o velho Rockefeller tinha um jornal próprio, feito unicamente para a sua delícia pessoal. Era um jornal só de boas notícias. Se um sujeito era atropelado, quem morria era o automóvel e não a vítima. Os Estados Unidos viviam aos beijos e abraços com a União Soviética. Para a múmia dos Rockefeller, essa imprensa deslumbrante era um indispensável estímulo vital, que o acompanhou até o fim da vida. Fernando Henrique não é nenhum Rockefeller. O seu poder tem caráter mais efêmero. Quando deixar a presidência será de repente obrigado, como qualquer mortal, a tolerar a alternância de boas e más notícias. Ninguém se acostuma a isso com facilidade. O mesmo se aplica, ainda que em menor escala, à figura do ex-ministro. Imaginem, por exemplo, o ex-ministro Kandir novamente obrigado a disputar espaço com os 500 e tantos outros deputados. Hoje, não. Qualquer declaração sua -e convenhamos que elas nem sempre ofuscam- repercute intensamente, ressoa por todos os meios de comunicação. O ministro começa a descobrir em si qualidades nunca antes reveladas. Mesmo em nível subministerial, o poder costuma desencadear curiosos fenômenos psicológicos. Alguns adotam ares imperiais. Há quem comece a comportar-se como Napoleão de hospício. Depois do aumento vertiginoso do déficit da balança comercial, iniciou-se a distribuição de insultos em todas as direções. Com amplo respaldo da mídia, tivemos a estréia da injúria como nova e criativa forma de discussão econômica. Mas estou me desviando do assunto. Deixemos os áulicos de lado e voltemos à questão da reeleição presidencial. É injusta, também, a crítica que se faz à pressa do governo em fazer passar a emenda da reeleição. A pressa tem a sua lógica. A situação econômica, em particular o desequilíbrio das contas públicas e o déficit externo em conta corrente, clama aos céus por medidas de ajustamento. Ora, todas as principais alternativas teoricamente disponíveis -cortes de gastos, aumentos de tributos, restrição ao crédito, desvalorização cambial- são dolorosas e politicamente difíceis. Tumultuariam a passagem da emenda constitucional. A verdade é que a luta pelo direito à reeleição reduziu a política econômica a uma condição de semiparalisia. É uma situação perigosa. Não pode durar muito tempo. Enquanto não passa a emenda, o jeito é tentar levar a coisa no grito. Isso inclui desde tentativas de intimidar os críticos da política econômica até agressões à lógica econômica mais elementar. Nas últimas semanas, e sobretudo depois da divulgação do desastroso déficit comercial de outubro, desencadeou-se uma ampla ofensiva de propaganda para convencer a opinião pública de que o desequilíbrio das contas governamentais não é tão grave, que o ajuste fiscal pode esperar, que a abundância de capitais financia qualquer desequilíbrio externo etc. Alguns dos argumentos utilizados são de fazer corar um principiante em economia. Mas, enfim, suponhamos que as expectativas do governo se confirmem e que a batalha pela emenda da reeleição dure mais alguns meses. Nesse caso, o governo federal teria uma "janela" de apenas cerca de um ano para fazer as "maldades" necessárias à correção dos desequilíbrios fiscal e externo. Afinal, se tudo der certo, a partir do início de 1998 o governo já estará empenhado na luta pela reeleição do presidente, e a política econômica ficará mais uma vez estritamente subordinada ao calendário político. E-mail: pnbjr@ibm.net Texto Anterior: Férias dobradas; Folga antecipada; Os responsáveis; Pedra sobre pedra; Dinheiro de plástico; Pensando no futuro; Com metas; Na frente; Fusão química; Sobra mercadoria; Falta venda; Os lanterninhas; Enfim, a festa; Facilitando o comércio; Adeus ao caviar; Segurança no esporte Próximo Texto: Petrobrás, Vale e o mar de mentiras Índice |
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