São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 1996
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O diário culinário de Jean-Paul Sartre

DAVID DREW ZINGG
EM SP

Adoro minha vida de escritor.
Não existe outra atividade na vida que seja mais bem remunerada do que esta. Não há ocupação humana que seja um embuste mais fácil do que este.
Morra de inveja, Joãozinho, quando eu te contar que, na semana passada, ganhei US$ 100 por palavra -só para responder a um juiz!
Mas nem sempre as coisas são tão cor-de-rosa assim.
Eu me lembro da primeira matéria que escrevi para esta Folha. Foi devolvida poucos dias depois, com um bilhetinho do sr. Frias: "Estou devolvendo esse papel -alguém escreveu em cima".
Uma coisa muito legal no Brasil é que os jornais podem publicar o que lhes der na telha. Outra coisa muito legal é que ninguém é obrigado a ler o que publicam.
Aqui na Bananalândia, a imprensa é protegida por um artigo extremamente fora da Constituição, que afirma o seguinte: "Não cobiçarás a mulher do teu próximo" (ou será que é dos Dez Mandamentos?).
Aposto que você acha que certas colunas de jornal são escritas para pessoas que tenham a profundidade intelectual de um chuchu -pessoas que precisam seguir instruções detalhadas por escrito para conseguir calçar os sapatos.
Sartre encontra Nina Horta
Alguns anos atrás, quando eu era amigo íntimo dele, Jean-Paul Sartre escrevia uma coluna de culinária no equivalente francês à Folha, o jornal "Le Monde".
Tio Dave vibrava todas as quintas-feiras, quando abria seu exemplar do "Le Monde" para acompanhar as proezas culinárias do grande filósofo francês.
Sartre sabia tudo. Ele provou que um cogumelo é como o amor. "Você só descobre se é o artigo legítimo quando já é tarde demais", costumava dizer, bebericando seu cálice de "fine".
Para a felicidade e confusão de alguns dos ases da Filosofia aqui da USP, vou mostrar para vocês, em primeiríssima mão, alguns trechos extraídos do pouco conhecido diário culinário de Jean-Paul Sartre.
3 DE OUTUBRO DE 1949. Hoje conversei com Camus sobre meu livro de receitas. Embora ele nunca na vida tenha comido, de fato, me incentivou muito. Corri para casa para começar a trabalhar. Já comecei a testar minha fórmula para o preparo de um prato tropical pouco conhecido, o omelete de Barretos.
4 DE OUTUBRO. Continuo trabalhando no omelete. Surgiram alguns obstáculos. Continuo criando omeletes, um depois do outro, como soldados marchando para dentro do mar, mas todos parecem vazios, ocos, como pedras.
Quero criar um omelete que expresse a ausência de significado da experiência. Em vez disso, ficam com gosto de queijo.
Olho para eles, deitados no prato, inanimados, mas eles não me olham de volta.
Tentei comê-los com a luz apagada. Não adiantou. Malraux sugeriu páprica.
6 DE OUTUBRO. Me conscientizei de que o omelete tradicional (ovos e queijo) é burguês. Tentei fazer um com cigarros, um pouco de café e quatro pedrinhas.
Ofereci minha criação a Malraux, que vomitou. Estou encorajado, mas sei que tenho um longo caminho pela frente.
10 DE OUTUBRO. Eu me vejo experimentando interpretações cada vez mais radicais de pratos tradicionais, num esforço para exprimir, de alguma maneira, o vazio interno que sinto tão vivamente. Hoje fiz a seguinte experiência:
ATUM AO FORNO
Ingredientes:
- Uma travessa grande que possa ir ao forno.
Modo de fazer:
- Coloque a travessa dentro do forno frio.
- Posicione uma cadeira de frente para o forno e fique sentado nela para sempre.
- Reflita sobre a fome no mundo.
- Quando a noite chegar, não acenda a luz.
Embora essa receita realmente expresse o vazio, o que me chama a atenção é sua completa inaplicabilidade ao estilo de vida burguês.
Como o consumidor poderá reconhecer que o prato que lhe é negado é um atum ao forno, e não outro qualquer?
Estou ficando cada vez mais frustrado.
25 DE OUTUBRO. Busco uma única receita que seja capaz de personificar, por si só, a condição humana em um mundo governado por um Deus indiferente. É um começo, pelo menos. Camus vai me odiar.
15 DE NOVEMBRO. Hoje fiz mais um raro e tropical Bolo Floresta Amazônica, com 25 quilos de bananas muito maduras e Simone de Beauvoir. Assim, desafio o próprio conceito da palavra "bolo".
Estou muito satisfeito com minha criação. Malraux disse que a admirou profundamente, mas que não podia ficar para a sobremesa.
Sinto que esta talvez seja minha maior conquista até agora. Resolvi inscrevê-la no Concurso Nina Horta de Bolos.
30 DE NOVEMBRO. Hoje foi o grande dia, dia de assar o bolo. As coisas não saíram exatamente conforme eu esperava.
Durante a avaliação dos trabalhos, Simone ficou agitada (dentro do bolo) e mordeu Nina Horta na ...... As poderosas mandíbulas de Simone são mais do que suficientes para infligir danos consideráveis às pernas delicadas da dona-de-casa favorita do Brasil.
Peguei apenas um 3º lugar e virei alvo de um processo judicial nada agradável.
1º DE DEZEMBRO. Nos últimos dois meses venho engordando 15 quilos por semana, além de estar sentindo calores súbitos.
É ridículo ficar tão gordo assim.
Minha dor e minha solidão final ainda são tão autênticas quanto eram na minha época de magro, mas parecem causar bem menos impressão às mocinhas.

Tradução de Clara Allain.

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