São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Estado do século 21

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Em seminário recente ocorrido no Rio de Janeiro, o filósofo político Claude Lefort, depois de lamentar que o capitalismo globalizado dos nossos dias esteja ameaçando as conquistas do Estado do Bem-Estar, afirmou: "Eu não defendo que esse Estado seja restabelecido como tal como existiu há algumas décadas, mas a questão é saber se ainda há no espírito democrático uma fonte de invenção capaz de se opor à cegueira do capitalismo" (Folha, 24/11). Essa é, na verdade, a questão fundamental de nossos dias. Não se trata de saber se há uma alternativa ao capitalismo, à economia de mercado, mas se existe uma alternativa ao processo em curso de destruição das conquistas sociais logradas pelo Estado do Bem-Estar.
Diante dessa questão, tanto a resposta da direita moderna, neoliberal, quanto a da esquerda arcaica, burocrática, é a mesma: negativa. Para essa direita radical, porque seu pensamento é "a-histórico" e conservador, porque para ela as falhas do Estado são sempre mais graves do que as falhas do mercado; para a esquerda burocrática, porque perdeu sua perspectiva histórica, está presa ao passado e não consegue ver o novo.
E, no entanto, o novo está surgindo em toda parte. Desde o início dos anos 70, estamos vivendo a crise do Estado do Bem-Estar -uma crise que o processo de globalização acentuou ao aumentar a competitividade internacional e reduzir a capacidade dos Estados nacionais de protegerem suas empresas e seus trabalhadores.
Essa crise levou o mundo a um generalizado processo de concentração de renda e a um aumento da violência sem precedentes, ao mesmo tempo que abria espaço para a crítica ideológica e dogmática da nova direita neoliberal. Mas é essa mesma crise que está incentivando a inovação social e a reforma do Estado.
Essas inovações dizem respeito às formas de propriedade e apontam para o papel estratégico que terá a propriedade pública não-estatal no século 21. O século 19 apresentou-nos um capitalismo dicotômico onde só havia a propriedade privada e a estatal. Esse foi o tempo do Estado Liberal, que separou o patrimônio privado do patrimônio público, a propriedade privada da propriedade estatal.
Com a crise do Estado Liberal, no século 20 o Estado do Bem-Estar, que também poderíamos chamar de Estado Social-Burocrático, tornou-se dominante. E com ele a propriedade corporativa -ou seja, a propriedade das entidades representativas de interesses- assumiu um papel estratégico, na medida em que esse Estado foi o produto de um amplo acordo de classes, em que sindicatos têm um papel estratégico.
O caráter burocrático desse Estado expressou-se na forma de intervenção do Estado no econômico e no social: na contratação de servidores públicos para dirigir empresas estatais e para realizar os serviços públicos nas áreas da educação, da saúde, da cultura e da pesquisa científica. Foi esse Estado Social-Burocrático que, ineficiente, capturado por interesses, entrou em crise nos anos 70.
No início do século, porém, a alternativa social-burocrática era a única forma de ação do Estado disponível para fazer frente à crise do Estado Liberal. Era a forma que garantia para os países de industrialização tardia o processo de acumulação primitiva essencial para a implantação do capitalismo. Era a forma por meio da qual os direitos sociais, fundamentais para a paz social, podiam naquele momento ser protegidos.
A partir, entretanto, dos anos 70, quando esse modelo de Estado entrou em crise, ao mesmo tempo que a globalização tornava a competição entre os países mais acirrada e exigia novas formas de administração pública, mais eficientes, já estava disponível uma nova forma de administrar os serviços sociais garantidos pelo Estado: as organizações públicas não-estatais.
De repente, foi ficando claro que o monopólio da esfera pública pelo Estado não é legítimo. Que já existem muitos exemplos de organizações que são públicas porque são de todos e para todos, porque são voltadas para o interesse público, mas que não são estatais, não fazendo parte do aparelho do Estado.
A propriedade pública não-estatal já se manifestava havia muito por meio das fundações e associações de beneficência. As universidades foram, originalmente, organizações públicas não-estatais, que, com a emergência dos Estados nacionais, foram estatizadas. Mais recentemente, porém, com a crise do Estado, em um número crescente de países universidades, museus, hospitais, centros de pesquisa, organizações de defesa do meio ambiente e de proteção dos direitos humanos passaram a ser públicas, mas não-estatais.
É dessa maneira que a sociedade está dando uma resposta à cegueira do capitalismo globalizado a que se refere Lefort. O século 21 será o século da propriedade pública não-estatal: uma forma de defesa dos direitos sociais mais eficiente, porque mais competitiva e flexível (a burocracia estatal é, por definição, monopolista), e mais democrática, porque diretamente submetida ao controle social.
O Estado que está surgindo da crise garantirá os direitos sociais ao financiar as organizações públicas não-estatais. Dessa forma, continuará a ser um Estado social, mas deixará de ser um Estado burocrático. Só manterá o monopólio das atividades que são exclusivas do Estado. Não será o Estado Mínimo sonhado pelos neoliberais, mas, ao deixar de ser burocrático, transformar-se-á em um Estado Social-Liberal, que protegerá os direitos sociais de forma competitiva. Assim, reformado e fortalecido, e com suas finanças recuperadas, esse Estado poderá contrabalançar os efeitos de distorção da globalização e garantir uma sociedade não apenas mais desenvolvida, mas menos injusta.

Texto Anterior: Caipirândia, Caipíria
Próximo Texto: Restabelecendo a verdade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.