São Paulo, sábado, 30 de novembro de 1996
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Comida e tristeza

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Vi nas folhas uma seleção de frases do presidente da República proferidas em seu programa radiofônico a respeito da venda da Vale do Rio Doce. Falando para os humildes, FHC segue sem saber o conselho de São Paulo, "gaudens cum gaudentibus": torna-se humilde com os humildes, mas não ao ponto de deixar de ser acaciano.
Ele garantiu que, vendendo a Vale, "vocês terão mais comida no prato, mais alegria no viver". Taí uma coisa que eu não suspeitava. Sempre pensei que a fome e a tristeza tivessem causas mais complicadas, jamais poderia supor que a venda de uma estatal acabaria com a herança do pecado original.
Fiquei até espantado de somente agora, dois anos depois de ter tomado posse e sessenta e poucos de vida, FHC apareça perante a plebe como o dono da pedra filosofal. Se a venda da Vale trará tantas e tamanhas benesses para "vocês" (humildemente, FHC não falou "nós", mas "vocês", incluindo-me piedosamente nessa chuva de maná que descerá sobre a nação), é lícito imaginar o que não aconteceria de divino e maravilhoso se, além da Vale, FHC vendesse a Amazônia "por preço justo".
Afinal, a Amazônia onera o orçamento nacional, tira mais do que dá -ao contrário da Vale, que sempre dá algum lucro, insignificante é verdade, mas lucro.
Teríamos melhor renda "per capita", não atrairíamos a cólera de outros povos pelos crimes ecológicos que lá se praticam. Ficaríamos livres das demarcações de terras indígenas que causam problemas com vizinhos -enfim, encheríamos as burras do Tesouro perdendo apenas um pouco do nosso imenso território.
Com o que sobrasse, ainda seríamos maior do que o Japão, a Alemanha, os tigres asiáticos. Se o problema é equilibrar contas, apresentar superávits e diminuir despesa, a venda da Amazônia traria melhor resultado do que a venda da Vale. Haveria mais comida e menos tristeza para o restante de brasileiros.

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