São Paulo, domingo, 1 de dezembro de 1996
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Cuidado com os imbecis

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não deixo de me espantar diante da incrível e sutil operação que nos últimos anos estão levando a cabo os espíritos mais puritanos, timoratos, retrógrados e repressores sob a máscara de um suposto "progressismo".
É extraordinário que, quando os censores máximos dos costumes, da linguagem e da sexualidade -os sacerdotes e as sacerdotisas das mais variadas religiões- pareciam ter perdido definitivamente a longa batalha de muitos séculos diante dos desejos de liberdade das pessoas, se tenha produzido uma assombrosa inversão de rumos, e acontece que, lá onde fracassaram as beatas e os santarrões, os esbirros de sacristia e as monjas, estão triunfando as mais acérrimas e simplórias feministas, os esquerdistas mais ridículos e grosseiros, os suscetíveis de todo tipo.
Há algumas semanas viu-se coroada de êxito uma de suas mais virulentas cruzadas, que coincide plenamente com a que foi impulsionada pelo zelo das igrejas ao longo da história, ou seja: a abolição do sexo.
Um beijo na bochecha
Um menino de seis anos, de sobrenome Prevette, na cidade norte-americana de Lexington, foi apanhado por uma professora chamada Jane Martin no momento de estalar um beijo na bochecha de uma menina da mesma idade. Isso trouxe como consequência para o menino uma série de advertências e castigos, sob a acusação de ter quebrado "a norma geral da escola, que proíbe que um aluno toque outro de forma injustificada e inoportuna".
Cabe perguntar-se, antes de mais nada, em que ocasiões seriam oportunos e estariam justificados os tocamentos, talvez somente quando um menino estiver sangrando e for necessário socorrê-lo? Não creio, o deixarão esvair-se em sangue, por temor da Aids. O certo é que o jovem Prevette foi tratado como um "assediador sexual" e suspenso por um dia do colégio. A diretora justificou a medida, pois, de acordo com o que informava a notícia, ainda que o pequeno Prevette tenha explicado que a menina lhe tinha pedido o beijo, "não foi capaz de demonstrar a justificação nem a oportunidade de seu impulso". E a tal Jane Martin reiterou a "gravidade moral" do ato e lançou outra pérola: "É uma conduta imprópria que um menino de seis anos beije uma menina de seis anos. A impropriedade é impropriedade em qualquer idade".
É fantástico. O que está acontecendo com o mundo? Por que se apoderaram dele os imbecis? Por que se lhes dá atenção, em vez de mandá-los à merda, ou diretamente à cadeia, quando são tão perigosos e perniciosos como estas professoras? Por que se aceita discutir cretinices? Por que eu mesmo estou escrevendo este artigo que não deveria ser necessário? Por que nos prestamos a argumentar sobre assuntos idiotas? Por que nos vemos obrigados a perder tempo com questões de ínfima estatura intelectual e duvidoso interesse?
Sintomas grotescos
Ortega y Gasset dizia -já o comentei uma vez- que os imbecis são muito mais perigosos do que os malvados, porque estes descansam, de vez em quando, de sua maldade, enquanto que aqueles não são capazes de abandonar nunca sua imbecilidade. Suponho que é este o motivo pelo qual não basta rir destes sintomas grotescos e idiotas de nosso tempo. Suponho que é este o motivo pelo qual não podemos nos permitir apenas desdenhá-los e ignorá-los: porque são perigosos e muito numerosos os imbecis em todas as partes.
Parece, isso sim, que atualmente o são mais nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar, mas esse episódio do menino Prevette não é algo isolado. Há pouco tempo me contava uma amiga psicóloga que lhe enviaram para tratamento uma menina de 12 anos que tinha beijado um menino em seu colégio em Madri. Não ocorreu outra coisa aos responsáveis do centro (de inspiração britânica) e à estúpida mãe do beijado a não ser mandar a menina à psicóloga, quando antes deveriam ser eles a visitá-la, e perpetuamente.
Não é apenas que o jovem Prevette vai evitar beijar ou abraçar alguém no futuro, não é somente ele. A notícia deu a volta ao mundo, criou-se um precedente da aberrante acusação. E, como as imbecilidades costumam prosperar, não será estranho se as crianças de todas as partes, na dúvida, frearem ou suprimirem seus impulsos. (Os imbecis o são por completo, até se contradizem nos termos: desde quando um "impulso" tem que ser "justificado"?) E afinal de contas sempre se tratou disto: de acabar com qualquer forma espontânea de vida, de reprimir os desejos e de atormentar o próximo. Agora, já não se atrevem a falar de "pecados", mas de "conduta imprópria". Mas não tenho dúvidas de que se trata da mesma coisa. Assim, cuidado com os imbecis.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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