São Paulo, domingo, 1 de dezembro de 1996
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A poesia culta de Mr. Words

CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Perto do centésimo aniversário de seu nascimento, no próximo dia 6, torna-se oportuno lançar aqui um olhar mais detido, ainda que rápido e algo digressivo, ao trabalho de Ira Gershwin (1896-1983), o letrista e parceiro de George Gershwin (1898-1937), no momento em que já se inicia nos Estados Unidos a série de comemorações que por dois anos celebrarão, até a data do centenário do nascimento de George, a imensa e valiosa herança prematuramente deixada por ele.
Se Cole Porter é sinônimo de sofisticação por tudo que, juntas, suas obra e sua figura, arte e vida, significaram, no plano mais estrito dos versos não seria fácil apontar quem supera quem em engenhosidade: se o autor de "You're the Top" ou o co-autor de "The Man I Love", "S'Wonderful", "A Foggy Day", "Fascinatin'Rhythm" e tantos outros clássicos da música americana dos anos 20 aos 40. Ambos estão entre "i migliori fabbri" da moderna palavra cantada. Não à toa, Ira era chamado de "Mr. Words" (Sr. Palavras), em complementação ao "Mr. Music" (Sr. Música), George: é muito raro se encontrar um letrista tão elegante, culto, cônscio e praticante de um sem-número de requintes linguísticos.
Beleza encantatória
Com Porter, Ira partilhou da visão do criar como algo difícil, a requerer esforço e trabalho. Em suas mãos, melodias sofreram um processo palimpséstico, em que várias letras foram escritas até chegar à forma definitiva. Tanto rigor valeu. Em termos de melopéia, a modalidade musical de poesia tão considerada por Ezra Pound, Ira simplesmente cintilou.
Favorecido pela plasticidade do inglês, criou versos de beleza encantatória, para os quais convocou os melhores efeitos aliterativos e paronomásticos. Como: "Music is the magic makes a gloomy day sunshiny", na abertura de "I Can't Be Bothered Now". Ou este, anagramaticamente enriquecido: "I must win some winsome miss", de "Oh, Lady, Be Good" -aliás, citada por Pound em seus "Cantos Pisanos".
Munido de um conhecimento largo e um domínio pleno dos artifícios poéticos, Ira os aplicava sempre para um maior refinamento de suas letras. Criando compostos e trocadilhos, verbalizando substantivos ("Ding dang it!"), empregando metásteses ("nosy cook/cosy nook"), ele as injetava de inventividade. Por outro lado, em seu expressivo rimário impera e exubera, aqui e ali, a imprevisibilidade ("passion'll/national", "Napoli/happily", "when you/menu"), sobretudo no uso de rimas leoninas ("free'n'easy/Viennesey"). Neste campo, é raro, em se tratando de uma balada sentimental de grande popularidade, o caso de "Embraceable You", quase inteiramente composta de rimas de quatro sílabas (entre elas a modelar "glorify love / 'Encore' if I love").
Por tais características, o virtuosístico estilo ira-gershwiniano guarda parentesco com trabalhos de autores que na época exerceram, em sua vertente mais leve, a chamada "light poetry", entre os quais destacou-se por exemplo o nome de Ogden Nash. Uma diferenciação essencial, contudo, se impõe: os jogos verbais de Ira foram criados sobre melodias preexistentes, sendo assim a sua uma arte muito mais complexa, qual seja a de sobrepor, conjugando-os, palavras a sons. (E a sons de ninguém menos que George Gershwin: de resto, alguém que, para Arnold Schoenberg, era, "acima de qualquer dúvida", um "inovador").
Falta de humor e de alma
Canção é o nome que se dá a essa arte, em que Ira é um mestre, alinhando-se, numa visão aberta, remotamente aos trovadores medievais, em particular os provençais, e aos cancionistas ingleses da era elisabetana; contemporaneamente a Porter e a Lorenz Hart (parceiro de Richard Rodgers); e posteriormente aos Dylans, Caetanos e Princes da música pop/popular de nosso tempo. Quanto aos últimos e penúltimos: acaso seus trabalhos não seriam "sérios" só porque de entretenimento? Schoenberg, no texto sobre Gershwin: "Sério ou não, ele é um compositor. (...) Há um número de compositores, sérios (como eles acreditam) ou não (como eu sei), que aprenderam a juntar notas. Mas eles são sérios apenas por causa de uma perfeita falta de humor e de alma".
George foi vitimado por um tumor cerebral aos 38 anos, numa das mortes mais trágicas da história da música moderna. O que ele e Ira tinham até então criado, no entanto, bastou para configurar uma das grandes obras do século (obliquamente evocada na letra de "Love Is Here to Stay", feita pouco depois que George morreu, e na qual Ira, a pretexto de fazer uma canção de amor permanente, parece aludir, homenageando o irmão, ao que os dois haviam construído juntos). O tímido e retraído Ira, que sempre cuidara dos negócios do irmão galante, extrovertido e namorador para que este levasse plenamente sua "vida de artista", tornou-se então o guardião da sua obra. Ao mesmo tempo, seguiu compondo, com parceiros da estirpe de Kurt Weill, Jerome Kern e Aaron Copland.
"Blablablá"
A letra aqui apresentada não prima pelo artesanato elaborado predominante em Ira. De todo modo, constitui uma de suas vertentes mais inventivas, uma de suas "canções-invenções" mesmo, como o poeta Augusto de Campos a denominou em "Cole Porter - Canções, Versões" (de Carlos Rennó, Paulicéia, 1991), assinalando que ela poderia ter sido escrita por Oswald de Andrade -e quem sabe cantada por João Gilberto, o bissexto compositor de "Bim-Bom" e "Hô-ba-la-lá", eu acrescentaria.
Datada de 1931, "Blah, Blah, Blah" faz (com humor) uma crítica ao tema das canções-temas (de amor) dos filmes de Hollywood. Canção-piada, portanto; em cima dos clichês das "love songs". Aqui, na língua e na linguagem do poeta de "amor/humor", num tributo ao espirituoso letrista americano. Afinal, ele também usou de humor -sutil, inteligente, irresistível- para falar de amor, tendo dito, em "Love Is Sweeping The Country": "All the sexes/ From Maine to Texas/ Have never known such love before"... (Todos os sexos/ De Maine ao Texas/ Nunca conheceram um amor assim antes).

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