São Paulo, segunda-feira, 2 de dezembro de 1996
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SAUDADES DA COLÔNIA

Há quem diga que a história permite, entre outros benefícios, tomar consciência de erros cometidos no passado. Certas decisões de política indigenista no Brasil, porém, parecem ignorar importantes lições registradas na história do país.
Em seminário realizado em Brasília, a Funai (Fundação Nacional do Índio) manifestou desejo de eliminar instrução normativa que restringe o ingresso de novas missões religiosas em aldeias indígenas. Segundo seu presidente, a norma é "policialesca", razão pela qual os convênios já existentes seriam renovados e não se criariam impedimentos para a entrada de novas missões.
Em defesa dos missionários, parece fácil invocar o direito constitucional de "livre locomoção no território nacional em tempo de paz". Também não foge ao bom senso defender o incremento de parcerias que auxiliem o Estado na implementação de uma política indigenista.
Entretanto, são conhecidos alguns efeitos danosos da ação evangelizadora nos tempos da colonização. A pretexto de resgatar os índios do estado "bestial" (expressão de Caminha) em que supostamente viveriam, a ação dos jesuítas deu início a um agressivo processo de deformação cultural daquelas comunidades.
São inegáveis as dificuldades de preservar integralmente a cultura dos índios. A complexa questão da demarcação de terras demonstra que não é nada simples atender plenamente todos os interesses dessas "duas humanidades", como dizia Lévi-Strauss. Porém uma das atribuições da Funai é oferecer certos benefícios da civilização sem promover uma destrutiva aculturação.
Além disso, ao admitir essa "parceria", a Funai fere uma das mais caras conquistas do mundo moderno, a clara separação entre as esferas laica e religiosa. Corre-se assim o risco de que a assistência devida pelo Estado seja substituída por uma ajuda comunitária condicionada à aceitação de práticas religiosas.
Para quem ainda se lembra dos desacertos coloniais, a opção da Funai inspira augúrios tenebrosos.

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