São Paulo, quinta-feira, 5 de dezembro de 1996
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Sobras de metal

MOACYR SCLIAR

Quando a violência aumentou na região onde ficava o colégio, a diretora convocou os professores para uma reunião urgente. Resolveram tomar uma providência imediata para proteger os alunos. De comum acordo com os pais, a diretora mandou chamar um serralheiro e pediu-lhe que colocasse uma chapa de ferro tapando a janela que dava para a rua. Mas vai tirar a luz, ponderou o homem. Prefiro os alunos sem luz do que em perigo, foi a resposta da diretora. O serralheiro não discutiu. A insegurança das pessoas era a razão principal de seu trabalho: grades, portões ou chapas, pouco importava. Ele faria o que lhe era solicitado.
Confeccionar a proteção não foi difícil para o experiente profissional. Ao colocá-la, contudo, o serralheiro verificou que precisaria deixar uma fresta entre a placa de metal e o peitoril da janela. Um centímetro, mais ou menos. Mas o que é um centímetro, num mundo em que tudo se mede em metros ou quilômetros? Um centímetro não poderia comprometer a segurança da blindagem. Ladrõezinhos magros se introduzem entre grades, mas quem vai se introduzir por uma fenda de um centímetro? Nem um braço, nem uma mão, nem mesmo um dedo passariam por ali. Os ajudantes concordaram; a proteção era quase perfeita, resistiria até mesmo a balas de grosso calibre. Tiraram, portanto, um centímetro na largura, com o que sobrou, naturalmente, uma apara, uma estreita tira de metal. Medindo um centímetro de largura. A mesma largura da fresta por onde nada, teoricamente, poderia passar.
Mas o ódio, como se sabe, faz milagres. Pela fresta passou o cano de um revólver. De um revólver que disparou. E atingiu um aluno, ferindo-o gravemente.
Desse incidente o serralheiro, homem que trabalhava muito, não ficou sabendo. Mas a esposa leu a notícia e naquela noite comentou com ele: veja que absurdo, nem mesmo uma placa de metal protege os pobres estudantes.
- O que você acha disso? - perguntou.
O serralheiro não respondeu. Não estava pensando no ocorrido, não estava pensando na brutalidade de nosso mundo. Estava pensando, sim, numa apara, numa estreita tira de metal medindo um centímetro de largura. Uma apara que ele tinha vendido, junto com outras sobras, para ser fundida e reciclada. Ou seja, para ser utilizada na confecção de outros objetos de metal.
Como um revólver, por exemplo. Um revólver pequeno e de cano suficientemente estreito para ser introduzido através de uma fresta medindo não mais que um centímetro de largura.

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