São Paulo, quinta-feira, 5 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Astúcia da aranha

OTAVIO FRIAS FILHO

Na tentativa hoje infrutífera de definir o que é a arte, Schopenhauer começou por excluir as imagens que despertam apetite ou repugnância. Falta-lhes, segundo o grande filósofo, o elemento de "desinteresse" que permitiria à arte transpor os limites acanhados do cotidiano rumo a algum tipo de transcendência.
Formas que suscitem a lascívia, a glutoneria ou o asco, em vez de superar a escuridão em que estamos mergulhados, só fazem aumentá-la ao acentuarem o que nos prende às contingências da vida, das quais somos escravos, quando o que se espera é que a arte nos emancipe, temporariamente que seja, delas.
Distinções menos sutis já foram atropeladas pela arte moderna, de modo que é sem nenhum problema que a "Aranha" de Louise Bourgeois -uma reprodução metálica do artrópode tal como ele figuraria num filme de Steven Spielberg- está entronizada na versão 1996 da Bienal de São Paulo e se tornou sua marca.
Capitalistas locais disputaram selvagemente a obra-prima. Temerosas de serem passadas para trás em qualquer assunto tentacular, as Organizações Globo entraram no leilão, que perderam, no entanto, para um banco paulista, em cujos jardins o monstro será exibido como uma espécie de advertência aos incautos.
Num dos seus acessos de literalidade, o patriarca do Bradesco, Amador Aguiar, mandou certa vez instalar a estátua de um asno na sede; doravante, explicou aos empregados atônitos, seria aquele o símbolo do banco. Tanto melhor se comentassem que era o próprio patrão na efígie: o burro expressava trabalho, perseverança.
Eram tempos mais amenos. Quase todo mundo sofre de aracnofobia em algum grau, mas o vago terror que a aranha transmite não emana tanto do que ela possa ter de animal, mas já de mecânico; não da sua penugem viscosa e primitiva, mas antes da nervosidade abrupta, quase eletrônica das suas investidas.
Qualquer ser humano normal foge de um banco como a mariposa evita esses predadores noturnos com olhos de robô. Contrair um empréstimo é grudar numa rede de fios invisíveis, debater-se é a senha para a cobrança implacável -se a vítima tiver sorte, fulminante. É fácil entrar num banco, sair é que são elas.
Estuprada por um parente adulto na infância, Louise Bourgeois tinha intenções totalmente outras quando concebeu o bicho. No repertório da escultora francesa, a aranha é a mãe, a força uterina da mulher, seus poderes de retaliação inesperada contra o mundo solar dos homens, já que Lorena Bobbitt ataca à noite.
Cruzando os trópicos, a peça trocou de sinal na alfândega da ideologia: dinheiro em vez de direitos, poder em vez de revolta, homens em vez de mulheres, o pânico reiterado e não vencido. A aranha mostra a ingenuidade do burrico e explica por que faliram os bancos simbolizados por um pobre guarda-chuva.

Texto Anterior: A Idade Média, outra vez
Próximo Texto: IDADE DAS TREVAS; CORREIO ELEGANTE
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.