São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A conferência de Cingapura

ROBERTO CAMPOS

"A globalização não vai desaparecer... A única questão é se vamos ou não acompanhar o seu avanço com políticas internas que nos permitam adaptar-nos à realidade das mudanças, sem um custo social intolerável."
R. Ruggiero, diretor geral da OMC Nos dias 9 a 13 deste mês reúne-se em Cingapura a primeira das conferências ministeriais da OMC (Organização Mundial do Comércio), previstas para cada dois anos. É a primeira avaliação do funcionamento desse organismo (que tem mais de 125 países membros e cerca de 30 candidatos), coincidindo com as novas realidades da globalização econômica.
O processo de globalização é um dado da realidade concreta, independente dos gostos ideológicos. As correntes de comércio mundial foram multiplicadas por 15 nos últimos 40 anos, muito mais do que a própria produção, que aumentou 6 vezes. Os fluxos de investimentos estrangeiros andaram ainda mais depressa; passaram de uns US$ 25 bilhões em 1973 para US$ 315 bilhões em 1995. Destes, entre um terço e metade deve ir para países em desenvolvimento, principalmente no sudeste asiático, que já há tempos fizeram suas reformas liberalizantes.
Entretecido com esse processo está o emprego. Nos Estados Unidos, um terço dos novos empregos nos últimos dez anos foi gerado por exportações. É certo que os ganhos não se distribuem igualmente entre todos. Os termos de troca entre produtos primários e manufaturados caíram 52% entre 1980 e 1992 (80 foi, aliás, anormalmente favorável aos produtos primários), sendo penosas as perdas na região mais pobre do mundo, a África sub-saariana.
O Gatt (o Acordo Geral de Tarifas e Comércio) realizou oito rodadas de negociações até a "Rodada Uruguai", que criou a OMC. Ao longo delas, reduziu as tarifas, em média, a menos de 4% do valor das mercadorias. A evidência estatística da tendência à crescente integração global é clara. Cada 16% de aumento no intercâmbio comercial está associado a um crescimento de 10% do produto mundial.
Desde 1948, o Gatt -estabelecido a título provisório, enquanto não fosse definitivamente criada a futura OMC- veio fazendo um longo caminho, primeiro no sentido da progressiva redução das tarifas e, mais recentemente, de outras barreiras ao comércio internacional. E agora começa a explorar outros campos, como direitos de propriedade intelectual, serviços, fluxos de investimentos, condições de competitividade etc.
O sucesso do Gatt refletiu-se, desde 1950, na redução dos níveis médios de tarifas a um décimo do que eram, com um aumento de 13 vezes no comércio internacional (bem mais rápido do que o próprio PIB mundial). E também numa lenta, mas progressiva melhora do clima de investimentos internacionais, com a liberalização dos controles de câmbio e a redução das restrições aos investimentos estrangeiros diretos. Estes eram praticamente inexistentes no imediato pós-guerra. Hoje só a parcela destinada às economias em desenvolvimento e "em transição" (ex-socialistas) saltou de US$ 20 bilhões em 1981-85 para US$ 91 bilhões em 1994.
Essa evolução representou, de certo modo, a retomada da tendência liberalizante iniciada na Europa, com o Tratado de Cobden-Chevalier de 1860, entre a Inglaterra e a França, e se propagou por todos os grandes países europeus até 1867 (exceto a Rússia), graças à generalização da cláusula da nação mais favorecida. A rede de concessões tarifárias que assim se criou seria mais ou menos espelhada, 90 anos depois, no desenvolvimento do Gatt. Os bons resultados da expansão da economia internacional foram, sem dúvida, um dos fatores contributivos para o fim da Guerra Fria e para a implosão dos regimes socialistas. No século passado, o movimento não foi inteiramente uniforme. As intensas rivalidades políticas e militares herdadas da fase de consolidação dos Estados nacionais modernos reacenderam, às vezes, surtos protecionistas. Em 1914, às vésperas da Primeira Guerra, embora na Inglaterra continuasse o livre comércio, as tarifas médias dos dois grandes adversários, a França e a Alemanha, haviam voltado a subir para 10% -aproximadamente a mesma cifra aplicada aos produtos manufaturados nos países industrializados (membros da OCDE) em 1972, quando entraram em vigor as reduções da Rodada Kennedy.
Não cabe dúvida de que o bem-estar que a era liberal deu ao mundo -o mais de meio século anterior à Primeira Guerra, que culminaria na "belle époque" (termo muito sugestivo da admiração universal que despertou)- se deveu ao persistente efeito de demonstração que as políticas comerciais abertas, com a sua contrapartida na democracia liberal representativa, foi exercendo em todas as sociedades com pretensão à civilização. O oposto aconteceria no período de entre-guerras.
Vale a pena lembrá-lo aqui porque nele estão as raízes de movimentos ideológicos fascistas, socialistas, nacionalistas e populistas com cujos últimos resíduos ainda hoje, no Brasil, temos de lidar. Nesse período, o cenário internacional foi de um jogo de soma zero, uma guerra permanente de todos contra todos. No começo da década de 30, os níveis tarifários atingiram alturas disparatadas -uma das causas da severidade sem precedentes da Grande Depressão. Entre 1929 e 1932, o comércio mundial caiu 25% em volume e 40% em valor, e tardaria a se recuperar. Em 1936, apesar de o volume da produção industrial já se ter recomposto, o do comércio ficou 15% abaixo de 1919. A integração de interesses promovida pelos negócios em escala internacional era, e continua hoje a ser, o melhor antídoto para as rivalidades entre os países.
Cingapura terá sua quota de novos problemas. Por exemplo, alguns países em desenvolvimento, entre os quais a Índia, a Indonésia, a Malásia e o Brasil, estão firmemente dispostos a enfrentar os industrializados contra a "cláusula social", que permitiria a imposição, no comércio internacional, de exigências trabalhistas entendidas segundo a ótica dos países mais ricos. Isso é visto como um truque para criar obstáculos às exportações, sobretudo de produtos industrializados, provenientes dos menos desenvolvidos. Por mais que muitos dos países pobres pudessem abrandar algumas das causas mais importantes de seu atraso econômico, sobretudo a proliferação demográfica e o dirigismo burocrático, eles não são pobres porque querem, mas porque a produtividade por trabalhador é muito baixa. O fato de não estarem conseguindo a máxima eficiência econômica possível não justifica que um grupo de países ricos (onde, no passado, em estágios de industrialização comparáveis, os salários também foram baixos e as condições penosas) lhes imponham deliberadamente punições comerciais.
Na OMC, duas posições podem gerar conflitos. Os industrializados têm procurado concentrar nesse organismo um número cada vez maior de assuntos econômicos internacionais, para tratá-los de forma conjunta. Os Estados Unidos insistem sobretudo na proteção da propriedade intelectual, que contribui com mais de US$ 45 bilhões para o balanço de pagamentos, calculando-se a receita perdida por pirataria em US$ 60 bilhões anualmente. Muitos países em desenvolvimento vêem essa linha com desconfiança. Os países em desenvolvimento, por sua vez, mostram irritação com a demora na redução dos subsídios agrícolas e dos obstáculos em matéria de têxteis e confecções. Nos países ricos, persistem ainda irritantes resquícios de protecionismo, o que torna sua pregação de livre comércio algo hipócrita.
O Brasil tem hoje grande responsabilidade, por exercer papel de ponte entre os dois mundos, o industrializado e o "em desenvolvimento". Teremos que explicar algumas aberrações: a tarifação de 70% sobre automóveis e principalmente o cretino protecionismo da tarifa de 32% sobre artigos de informática, num momento em que os países da Apec, que representam mais de metade da produção mundial, acordaram em "eliminar substancialmente", em quatro anos, todas as barreiras à tecnologia de informação!...

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