São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A alternativa nômade

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

A língua inglesa possui dois termos que, tanto quanto sei, não têm tradução elegante em nenhuma outra língua européia. O primeiro é "travelogue", que designa o relato de viagens como gênero literário de méritos e exigências próprias; num país de tradição mercantil e imperial como a Inglaterra, não poderia deixar de ter larga história, de Hakluyt a Durrell e Naipaul, passando por Burton e Stevenson. O segundo termo, cunhado pelo Dr. Johnson, é "serendipity", que o dicionário de Antônio Houaiss define assim: "faculdade de fazer, acidentalmente, descobertas felizes e inesperadas". Os dois termos descrevem perfeitamente os livros de Bruce Chatwin (1940-1989).
Depois de uma estréia promissora no mundo das artes (ou melhor, na Sotheby's), um distúrbio visual tão súbito quanto passageiro forçou o jovem Chatwin a umas férias fora de hora (no Sudão). Acabava aí a carreira de marchand e começava a de escritor e viajante irrequieto. Note-se bem: "viajante", e não "turista", pois ele mesmo tinha o turismo por um dos pecados capitais.
Foi romancista de talento, de linguagem ao mesmo tempo elíptica, muito precisa e sempre irônica ("On The Black Hill", "Utz" e "O Vice-Rei de Uidá" -filmado por Werner Herzog); como repórter, traçou ótimos perfis de gente tão díspar quanto Konrad Lorenz e Indira Gandhi, Ernst Jünger e André Malraux. Mas foi como autor de relatos de viagem que deu o melhor de si.
Esteve por toda parte, sempre de olhos bem abertos: do Afeganistão, onde quase rola desfiladeiro abaixo junto com o caminhão em que viajava, ao Brasil, onde teve um bloco de notas confiscado pela polícia, sob suspeita de conter dados sobre a tortura política cifrados em descrições de anjos barrocos. Algumas dessas viagens estão contadas nos relatos curtos de "What Am I Doing Here" (Penguin, 1990). Nos anos 70, viajou pela Patagônia argentina e contou a experiência em "Na Patagônia", sua obra-prima e, sem dúvida, um monumento da boa prosa. Na década seguinte, o alvo escolhido foi o deserto central australiano, e o resultado é este "O Rastro dos Cantos", agora publicado por aqui.
O que levou Chatwin a paragens tão ermas? A história é um tanto longa. Ao largar a carreira na Sotheby's em 1966, o autor planejara escrever um livro sobre as civilizações nômades e seu lugar na história da cultura humana. Viajou com tribos da Mauritânia e do Irã, leu muito, preencheu pilhas de blocos de anotações e acabou desistindo do projeto. Ficaram as muitas idéias contidas nas notas (parcialmente reproduzidas em "O Rastro dos Cantos") e no ensaio "Nomad Invasions" (1972).
A idéia fundamental é a de que o homem é um animal irrequieto por natureza, na acepção estrita dos termos; nossa inquietude geográfica seria uma herança filogenética dos tempos muito recuados em que vivíamos na savana africana: "Se assim fosse, se o deserto fosse o 'lar', se nossos instintos fossem forjados no deserto, para sobreviver aos rigores do deserto -então ficaria mais fácil compreender por que as pastagens mais verdejantes nos enfastiam, por que os bens nos esgotam, e por que o homem imaginário de Pascal vê como uma prisão seus confortáveis aposentos" (caso você não saiba, Pascal disse que nossos infortúnios derivam da incapacidade de ficarmos quietos no quarto).
A idéia talvez seja fantasiosa e excêntrica demais para ser verdadeira, o que não quer dizer grande coisa: voltou os olhos do autor para uma série de fenômenos habitualmente negligenciados e, mais ainda, norteou o modo de vida de quem queria palmilhar a Terra inteira.
Voltando à Austrália: os mitos australianos da criação do mundo dizem que os Antepassados criaram o mundo a pé, cantando e nomeando as coisas: a cada dois passos, um novo segmento de seu canto traz à luz um novo ser ou objeto. Uma Criação literalmente "pari passu". O caminho percorrido por cada um dos antepassados é conhecido por seus descendentes como uma "songline", uma trilha do canto. Percorrê-la recantando os versos cosmogônicos e reencenando a Criação é dever e apanágio dos membros adultos das várias tribos, capazes de ir do Mar de Timor à Grande Baía Australiana sem nenhum mapa.
O apelo era óbvio; Chatwin não poderia deixar de conferir, e acertou em cheio. Corria o risco de produzir mais um triste exemplar de omelete mitológico New Age, mas safou-se galhardamente.
Descobriu que as "songlines" percorrem o espaço sem demarcar fronteiras verticais; percebeu que, para olhos aborígines, não há acidentes geográficos, panoramas ou belvederes, mas sim um mundo natural abundante de sentidos e reminiscências; deu de encontro com o que se possa imaginar de mais insólito, absurdo ou comovente: um halterofilista leitor de Spinoza, um comunista frenético definhando lentamente no deserto, um aborígine poliglota que guarda um volume de Nietzsche em sua cabana, um ativista russo-australiano com ares de Aliosha Karamazov, policiais fascistas e aborígines bêbados.
E sugere que a colonização branca ainda é, depois de duzentos anos e tantos anos, um imenso mal-entendido: afinal, Alice Springs é apenas "uma rede de ruas tórridas onde homens com meias três-quartos brancas viviam entrando e saindo de Land Cruisers".
Tudo isso mais que basta para recomendar o livro a quem quiser descobrir um autor original e um lugar idem. Se não for o seu caso, tudo bem: folheie o "Frommer's" ou vá praticar tai chi no gramado do Ibirapuera.

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