São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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Grandes olhos sobre Shakespeare

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A figura pública ficou magistralmente registrada na "Vida de Johnson", de James Boswell, até hoje tida como o modelo de biografia intelectual, alimentando involuntariamente o lugar-comum de que o verdadeiro brilho do doutor estaria na conversação, morta com ele, e de que a leitura nua e crua de sua vastíssima obra seria, hoje, um penoso exercício de paciência. Desconte-se a antipatia moderna pela austeridade formal do neoclassicismo, o que se encontra aqui é a má vontade apressada do saber de segunda mão, que, pensando em bloco, fala dos clássicos de orelha e rotula segundo a opinião da moda. Nada mais contrário ao espírito de Johnson.
Não se pode perder de vista que a carreira de Johnson é a de um escritor profissional, contemporânea à profissionalização das letras. Ele foi um dos precursores de uma nova era, em que o mecenato de nobres cedia espaço ao dinheiro anônimo do público. Estava obrigado, para sobreviver, a escrever muito. Por isso elaborou e vendeu a editores planos de obras que jamais chegaram a se concretizar, sustentou praticamente sozinho dois periódicos (o "Rambler" -208 números, entre 1750 e 1752- e o "Idler" -104 ensaios, entre 1758 e 1760, que foram a "pièce de résistance" do "Universal Chronicle").
Atacava em todas as frentes: escreveu para teatro, poesia, um romance filosófico ("Rasselas"), um dicionário. Ganha-pão, a pena era também uma vocação compulsiva. Assim, quando o problema eram as palavras, não se esquivava dos pedidos de socorro feitos pelos amigos, produzindo, sem receber um tostão, das coisas mais simples -dedicatórias, apresentações-, às mais trabalhosas -como as conferências que compuseram o curso inaugural de um jovem e apavorado professor iniciante de direito em Oxford.
O "Prefácio a Shakespeare", que a Iluminuras lança em ótima tradução anotada de Enid Abreu Dobránszky, autora também do utilíssimo estudo introdutório que situa o texto no debate estético do século 18, aparece nesse contexto como parte de um de seus inúmeros projetos, dessa vez levado a cabo, 20 anos depois de concebido, entre 1756 e 1764, por um Johnson de meia idade (56 anos). Trata-se do texto introdutório da reedição com notas das obras do velho bardo, trabalho de "scholar" em que a prosa clara, bem-humorada e agudamente espirituosa de Johnson vai além dos preconceitos estéticos de sua época no exame rigoroso dos méritos e defeitos do teatro de Shakespeare.
Johnson desconfiava do elogio excessivo, da sacralização de qualquer autor, mesmo daqueles que, geniais como o autor de "Hamlet", já tinham passado pelo crivo crítico do tempo. Tinha, além disso, fortemente desenvolvido o sentimento da contradição, a sensibilidade para perceber a convivência de contrários dentro de um mesmo objeto (herança do estudo do direito, de um treinamento retórico para encontrar argumentos fortes para os dois lados de uma questão). Assim, recusou-se a combater em Shakespeare os traços que pareciam ao senso comum da época faltas graves, passou a limpo certo folclore que já então se construía em torno do seu nome, mas apontou o que lhe parecia falho e mal acabado.
A capacidade de imitação direta da natureza, a construção de tipos universais em cada um de seus personagens, sem prejuízo da sua credibilidade individual, traduz-se num registro preciso da língua das ruas, elaborada numa linguagem que, ao mesmo tempo, não se confunde com o descuido da fala escrachada do populacho, nem se apaga na artificialidade da escrita elevada. Johnson não toma a ruptura do decoro estilístico como um pecado shakespeariano, mas como a expressão do gênio capaz de forçar os limites da forma em benefício da verdade da representação.
Assim também sua avaliação da mescla estilística promovida pelo teatro de Shakespeare, cuja peças não se acomodam nas definições clássicas de tragédia ou comédia. Como na vida, a ação das peças alterna e entremeia o sério e o ridículo, a jocosidade do Bobo e o sofrimento de Lear. Ponto para Shakespeare, na perspectiva de Johnson, que tampouco se abala com a ruptura das três unidades (tempo, espaço e ação), consequência da busca do dramaturgo pela variedade e veracidade da representação psicológica das situações e dos personagens.
Num homem tipicamente setecentista, cujos modelos de excelência eram Dryden e Pope, encarnações do neoclássico, espanta a generosidade e abertura de espírito, capaz de reconhecer o mérito apesar das disposições pessoais e das inclinações do seu tempo. O que não o impede de reclamar do teatro de Shakespeare uma exemplaridade didática nos enredos, na distribuição de recompensas e castigos aos personagens que, hoje, nos espanta. Da mesma forma, Johnson sustenta que Shakespeare está em seu elemento nos diálogos cômicos, melhores do que os monólogos ou os versos trágicos e não se conforma com a pressa ocasional do gênio em registrar as idéias, recusando-se a burilá-las e prejudicando seus enredos.
As reações à obra de Shakespeare poderiam servir de eixo a uma história da crítica e da sensibilidade literárias modernas. Neste volume, a inclusão do texto de Stendhal possibilita ao leitor acompanhar o que seria o capítulo seguinte: a resposta entusiasmada dos românticos à originalidade shakespeariana e sua aceitação tardia pelo espírito francês, amante da clareza e das distinções nítidas. Além das páginas curiosas sobre o riso, Stendhal discute, na esteira de Johnson, a questão da ilusão dramática, suscitada pela quebra das unidades. Os saltos temporais e espaciais ainda eram rejeitados como violações à necessária "suspensão da descrença" dos espectadores. O absurdo de um caso exemplar (o de um espectador que, revoltado, não permitiu que Desdêmona fosse "morta" por um negro, assassinando, no palco, o ator que representava Otelo) serve-lhe como prova de que, no teatro, deve-se acreditar na verdade da representação como verdade dramática e não literal.

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