São Paulo, segunda-feira, 9 de dezembro de 1996
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'É difícil dizer não a quem tem poder', afirma Portugal

VALDO CRUZ; VIVALDO DE SOUSA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O ajuste fiscal é a perna que ainda falta ao Plano Real. Essa é a opinião do economista Murilo Portugal, que durante "quatro anos, um mês e nove dias" cuidou do caixa do governo federal.
O ex-secretário do Tesouro Nacional, que deixou o cargo no último dia 2 de dezembro, diz, porém, que a saúde das finanças públicas está melhorando neste ano e que seu melhor momento no governo foi ver o resultado do Plano Real.
O estilo sovina do ex-secretário provocou irritação em muita gente -de dentro e de fora do governo.
Alguns ministros chegaram a ameaçar pedir demissão caso ele não liberasse dinheiro. Um empresário ligou para sua casa dizendo que iria se suicidar porque o governo não lhe pagava uma dívida.
A seguir, trechos da entrevista do ex-secretário, que já participou de três governos (Collor, Itamar e FHC) e nos próximos dois anos estará à frente de uma diretoria executiva do Banco Mundial:
*
Folha - Quais foram os piores e os melhores momentos no cargo?
Murilo Portugal - Eu me lembro mais dos melhores momentos, como ver o resultado do Plano Real. Foi uma aposta muito corajosa.
Folha - Há pessoas que criticam o ajuste fiscal, dizendo que foi feito apenas na boca do caixa.
Portugal - É verdade que esse tem sido, tradicionalmente, o sistema das finanças públicas brasileiras. Mas tem mudado um pouco. No período de alta inflação, era difícil fazer uma previsão adequada da receita. E, não tendo uma previsão adequada, ficava difícil fazer o Orçamento.
Folha - O que tem mudado?
Portugal - Você tinha alguns comportamentos que levavam a isso. Por exemplo, você fazia superestimativa de receita para depois falar que havia recursos.
Folha - Como era feito isso?
Portugal - Era um processo que acontecia parte no Executivo, parte no Legislativo. Outro comportamento que existia era a subestimativa de despesas que não poderiam ser evitadas.
Folha - De que tipo?
Portugal - Pessoal. O sujeito previa que ia gastar menos para sobrarem recursos para outras coisas, mesmo sabendo que ia gastar mais. Eram comuns, no final de ano, as suplementações das dotações de pessoal. Isso acabou.
Folha - Antes, a inflação alta dificultava o planejamento. Agora, reclama-se da falta de regularidade financeira do Tesouro.
Portugal - Isso mudou. Hoje nós podemos dar uma regularidade financeira maior, mas ainda não é no nível previsto no Orçamento. Nós fazíamos uma programação trimestral que era publicada no "Diário Oficial", mas que era insuficiente, porque não se podia prever o ano todo. Este ano, temos um decreto para o ano inteiro, que estabelece quanto cada ministério vai receber por trimestre. E isso é cumprido.
Folha - Mas o ex-ministro Adib Jatene vivia pedindo dinheiro...
Portugal - Porque a Saúde é um ministério que requer muito dinheiro. Ali, havia dois tipos de problema que o próprio ministro Jatene reconhecia. Um é a falta de recursos. Outro é o mau uso, que ele mesmo vinha combatendo. Eu tenho grande admiração pelo ministro Jatene.
Folha - Há algum outro ministério que pede muitos recursos?
Portugal - Todos os ministérios. Não só eles, mas também os governos estaduais. O problema é que, aparentemente, você pode resolver quase tudo, na Esplanada dos Ministérios, gastando mais ou fazendo mais dívida, se quiser.
O único problema que não é resolvido assim é a inflação. Por isso é que o Tesouro tem de resistir e defender o contribuinte.
Folha - Houve algum dia em que o sr. recebeu muitos ministros ou governadores e chegou em casa "arrebentado"?
Portugal - Quem vai pedir recursos tem um grau de poder elevado. É ministro de Estado, é presidente de estatal, é governador. E isso torna mais difícil dizer não. E dizer não para quem tem razão e tem poder político é complicado. Essa questão só pôde ser resolvida com o apoio do presidente da República. Isso nunca faltou.
Folha - Alguém chegou a reclamar do sr. ao ministro da Fazenda?
Portugal - Houve caso de ministro reclamar pelo telefone, de maneira muito veemente. Ameaças veladas de demissão.
Folha - Ameaça de pedir sua demissão?
Portugal - Não. De ele (o ministro) pedir demissão.
Folha - E como o sr. reagia a isso?
Portugal - Com compreensão e tentando explicar ao ministro.
Folha - O sr. saiu num momento em que as contas públicas não estão muito boas. O sr. não fica frustrado pelo fato de o déficit estar aumentando?
Portugal - Não. O déficit não está aumentando. Ele está caindo. Houve um aumento de 94 para 95. E a explicação é que deixamos de cobrar o imposto inflacionário. Quem ganhava com a inflação eram o governo e o sistema financeiro. Este ano será melhor, e o próximo também.
Folha - Mas o déficit deve ficar bem acima do previsto.
Portugal - É verdade. Queríamos menos.
Folha - Os juros pesaram nesse resultado?
Portugal - Ao contrário. A queda dos juros foi o que mais ajudou. Nós tivemos menos receita do que esperávamos, e a inflação, felizmente, foi mais baixa do que o previsto. Deve ficar em 10% no ano. Prevíamos que ficaria em 15%.
Folha - O sr. já foi procurado em casa para resolver problemas do Tesouro?
Portugal - Já. Uma vez um sujeito me ligou por volta de meia-noite. Era um empresário que tinha uma dívida a receber, viu meu nome no catálogo e disse que iria se suicidar naquela noite.
Folha - O que o sr. fez?
Portugal - Pedi para me procurar no outro dia. Ele ligou e pediu desculpas.
Folha - Como é a composição das receitas do Tesouro?
Portugal - A receita mensal é fornecida pela Receita Federal para cada dia. Com base nisso, nós geramos a informação de quais são as transferências constitucionais e obrigatórias. A receita média mensal é de R$ 7,5 bilhões. Você tem cerca de R$ 2 bilhões de transferências para Estados e municípios.
Folha - O sr. teve medo de ser preso alguma vez?
Portugal - Houve vários mandados de prisão, mas não precisei me esconder. Teve um caso, quando fui vender um apartamento no Rio de Janeiro, recebido como herança junto com meus irmãos. Era necessária uma certidão negativa. Pedi para um amigo providenciar, e ele disse que tinha dado positiva. O processo era movido pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Tive que acertar depois, com o presidente do INSS, que a ação era contra o Ministério da Fazenda, e não contra mim. Quase perdi a venda.
Folha - O sr. acha que ainda falta o ajuste fiscal?
Portugal - Essa é a perna que falta para o Plano Real.
Folha - O sr. é a favor da reeleição?
Portugal - Sou. Acho que é um mecanismo que estimula a adoção de políticas corretas, porque elas têm um prazo longo.
Folha - Em algum momento o sr. chegou a pensar em se demitir?
Portugal - Minha família sempre me pressionou. Minha mulher fez até promessa.
Folha - Quem controla os gastos na sua casa?
Portugal - Minha mulher. Eu não tinha tempo. Quase não dava cheque. Só para pagar gasolina, e isso quando não pedia ao motorista para colocar. Eu não compro nada. Até minha roupa era minha mulher quem comprava. Nunca saí para ir comprar nada no supermercado.

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