São Paulo, segunda-feira, 9 de dezembro de 1996
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O que queremos dizer com "Bye-Bye, Brazil"

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

A cultura brasileira pode ser sufocada pela norte-americana neste processo de globalização? Parece uma pergunta idiota, e talvez seja, mas confesso que a coloco há algum tempo. Provisoriamente, respondo não.
A idéia de que a produção cultural pode ser destruída pela presença estrangeira iguala-a, por exemplo, à produção de todas as outras mercadorias, num momento em que empresas nacionais menos competitivas vão desaparecendo.
Com a cultura o buraco é mais embaixo. Um dos primeiros a defender essa tese foi Frederick Buell ("National Culture and the New Global System", The John Hopkins University Press, 364 págs.), que mostrou que a internacionalização de nossas culturas se deu desde o chamado descobrimento.
Em seguida, levantou a hipótese de que a previsão da morte de culturas de países mais pobres, no fundo, pode ser uma introjeção do próprio paternalismo colonial, que não vê nelas chance de sobrevivência.
Aliás, o livro de Buell dedica boa parte de seus esforços examinando o filme de Cacá Diegues "Bye-Bye Brazil", uma das mais inteligentes abordagens do problema na arte moderna.
Buell já intuía que o simples consumo cultural de determinadas obras de TV, por exemplo, não significa a mudança cultural, pois ele considera que os espectadores, de certa forma, negociam com o que assistem -distinguem o plano do que acontece na tela do que acontece na sua vida real.
Eu estava mais ou menos aí, em minhas reflexões, quando surgiu o ensaio de Samuel P. Huntington na "Foreign Affairs": "O Ocidente e o Mundo". Sua tese é a de que a imagem da universalização do Ocidente é equivocada, arrogante, falsa e perigosa. E vem, de certa maneira, confirmar minhas suspeitas.
Huntington não trata diretamente de uma oposição, digamos, entre o Brasil e os Estados Unidos, mas trabalha com Ocidente versus Oriente.
Começa desmontando a tese da colonização Coca-Cola. É um conceito segundo o qual a cultura popular norte-americana está envolvendo o mundo, a partir do consumo de comida, roupa, música e filmes.
Ele acha que os advogados da colonização Coca-Cola reduzem a cultura ao consumo de bens materiais, esquecendo-se de que ela é feita, basicamente, de idioma, religião, tradições e costumes.
"Beber Coca-Cola", diz Huntington, "não faz um russo pensar como um americano, nem comer sushi faz um americano pensar como um japonês."
Também na opinião dele, o argumento de que a cultura popular norte-americana representa o triunfo ocidental é uma espécie de menosprezo das outras culturas e uma supersimplificação do Ocidente, que deve ser definido "pela Magna Carta e não pelo MagnaMac".
Depois desse pequeno combate, Huntington passa a enfrentar outro argumento: o da modernização como elemento que acabaria igualando as culturas aos padrões dominantes do Ocidente.
Industrialização, urbanização, aumento do número de alfabetizados, uma estrutura ocupacional mais complexa, tudo isso faz parte do mundo moderno.
Mas não garante uma identidade cultural completa. As sociedades tradicionais eram tradicionais e diferentes entre si. Não há razão para que todas se igualem agora.
Ele considera a América Latina uma parte do Ocidente que ainda vai se integrar mais ainda no todo dominante, mas lança um dado que não posso confirmar nem desmentir: está caindo proporcionalmente o número de pessoas que falam inglês no mundo.
A sensação que tinha era contrária a isso. Ele cita uma pesquisa de Sidney Culbert, da Universidade de Washington, mostrando que o inglês, como primeira ou segunda língua, era falado por 9,8% da humanidade, em 1958. Já em 1992, esse índice caiu para 7,6%.
Ao combater a tese de que a cultura popular norte-americana deve dominar o mundo, Huntington acaba caindo num certo "defensivismo", propondo controle maior da imigração oriental, exigência da adaptação aos costumes locais -enfim, um certo temor de que o contrário um dia aconteça: que o Oriente se imponha.
É um tema longo e complexo demais para um curto espaço. Mas a sensação que tinha sobre a cultura brasileira acabou se fortalecendo após essas leituras.
Em primeiro lugar, porque se reconhece na audiência dessa produção cultural um caráter ativo, uma capacidade de selecionar e relativizar o material que recebe no confronto com sua vida cotidiana.
Mais importante ainda, o que daria novos e inflamados debates, é combater essa idéia de que nossa cultura é uma virgem imaculada, vulnerável a violações.
Aceitar essa visão seria negar que a nossa é uma cultura "impura" e violada por séculos de interação, outra descoberta interessante para os que pensam que o mundo começou a se relacionar somente a partir da globalização.
Os vírus que os portugueses trouxeram, o pau-brasil que levaram, o esforço em cobrir a índia nua na Primeira Missa já eram um processo de intercâmbio e violação que não parou através dos séculos.
E possivelmente não vai acabar com o triunfo de uma só cultura ou do bloco ocidental.

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