São Paulo, segunda-feira, 9 de dezembro de 1996
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João do Vale, a voz do povo brasileiro

FERREIRA GULLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Conheci João do Vale em 1964 quando nosso grupo semiclandestino de resistência à ditadura montou o show "Opinião". A idéia foi de Vianinha, inspirada no disco que Nara acabara de lançar com esse nome. Ouvíramos João, pela primeira vez, no Zicartola, e Thereza Aragão havia dirigido uma apresentação dele na Associação dos Comerciários. Naquela tarde de sábado, pela primeira vez na vida João entrou em cena, encabuladíssimo, metido num terno bege que lhe sobrava no paletó e nas calças. Mas comoveu as pessoas e daí a pouco estava à vontade cantando e contando suas histórias pitorescas e maliciosas.
O humor, a malícia, era um dos traços característicos de João, que se manifestava nas conversas, nas brincadeiras e gozações. Esse humor sertanejo, ora malicioso ora poético, era expressão também de sua sensibilidade e de sua inteligência. Quase sem estudos, João desde cedo fizera de sua música veículo de uma visão crítica da sociedade brasileira. Mas sem pretensão, sem sofisticação, sem se pretender engajado: visão de um poeta nascido do povo, do mais fundo dele, numa pequena cidade do interior do Maranhão. As injustiças decorrentes da desigualdade social marcaram-lhe a infância, mas não lhe tiraram o bom humor. Essa mescla de idéias e sentimentos é que fazem o encanto de "Pisa na Fulô", "Carcará", "Peba na Pimenta" ou "As Meninas do Grotão", para só mencionar algumas das 400 músicas que ele compôs ao longo de sua vida.
Em 1977, quando, de volta do exílio, visitei São Luís, João promoveu um jantar para mim na casa de uns amigos. Fazia tempos que não nos víamos. Pude de novo abraçá-lo e ouvi-lo cantar, não suas canções, mas as cantigas do sertão maranhense, que constituíam sua verdadeira cultura. Só então compreendi que o quase analfabeto João do Vale era na verdade um homem culto: não de nossa cultura letrada, citadina, mas daquela que o povo criara ao longo das décadas e que ele incorporava. Era o manancial que o alimentou e que ele enriqueceu com seu talento e sua inteligência. Chegamos a combinar que, de volta ao Rio, gravaríamos em fita todas as cantigas que ele trazia na memória. "Um dia morro e tudo isso pode se perder", disse-me ele.
Infelizmente, não levamos adiante nosso projeto. Anos depois veio o primeiro derrame, as dificuldades maiores, que ele, preso a uma cadeira de rodas, soube enfrentar com coragem e bom humor. Ao nos encontrarmos num show em sua homenagem, ele me disse rindo: "Tá vendo, poeta? Agora, eu canto de cadeira...". E caímos os dois na gargalhada.

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