São Paulo, quinta-feira, 12 de dezembro de 1996
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Maldosa língua

MOACYR SCLIAR

"Senhor juiz, senhores jurados: estamos aqui, neste tribunal, para julgar um caso que é tão insólito quanto grave. Trata-se de um delito que ofende os mais comezinhos princípios da moral. E quem o praticou, senhores? O jovem que está aí no banco dos réus queira, por favor, mostrar a língua. Aí está.
A nossa acusada, senhores, é exatamente esta língua. Olhem bem para ela. Aparentemente, é uma língua normal. A forma é de língua normal, o desenho é de língua normal. Mas não se trata de uma língua normal. Ou melhor: é uma língua tão normal quanto a língua da serpente que tentou Eva no Jardim do Éden. Esta língua, senhores, é a própria encarnação do pecado. Sob a aparência de uma inocente parte do corpo humano esconde-se a perversidade. A língua, diz o Livro dos Provérbios, tem poder de vida e de morte. Esta língua que aí está demonstra-o à perfeição. Se os senhores me permitem, dirigirei à acusada uma série de perguntas que demonstrarão a sua culpabilidade. Por que à língua, e não ao jovem que a porta? Porque, senhores, parto do princípio de que este pobre rapaz nada mais é que um dócil instrumento. É a língua que o controla. Ela o obriga a fazer as coisas que faz.
Então responda, língua: qual foi sua intenção quando, ao abrir-se a boca em que você está contida, você se projetou em direção a uma menina de 12 anos -12 anos, senhores!- que casualmente estava nas proximidades? Hein? O que tinha você em mente?
Responda mais: ao projetar-se, você estava seca, ou úmida? Sua superfície mostrava-se opaca ou reluzia com o brilho do pecado?
E finalmente, a coisa mais importante: projetada para fora da boca você manteve-se imóvel, ou fez movimentos? Se fez movimentos, eles eram lentos, ou, pelo contrário rápidos? Quão rápidos, língua? Muito rápidos, língua: Tão rápidos como o bote da serpente, língua? Poderiam, língua, esses movimentos sugerir, ainda que de forma muito velada, a possibilidade de um cunnilingus?
Não responde. Por quê, senhores? A explicação é óbvia. Não responde porque é culpada, esta língua. O que a trava é o peso da culpa. Por isso, peço para esta língua uma condenação imediata.
Sinto-me autorizado a exigir tal veredicto, senhor juiz. Este que vos fala nunca usou a língua para outra coisa a não ser para molhar selos. O senhor sabe a que fantasias estive submetido, enquanto molhava selos com a língua? O senhor sabe o quanto sofri? Em nome de meu sofrimento é que lhe peço: condene esta língua, senhor juiz. Condene-a a passar o resto da vida molhando selos. Desde, é claro, que esses selos não tenham figura de mulher. Com língua perversa não se brinca."

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