São Paulo, quinta-feira, 12 de dezembro de 1996
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Saúde de ferro

OTAVIO FRIAS FILHO

O senador Severo Gomes adorava contar a história daquele papa alquebrado, eleito para um mandato brevíssimo, conforme prometia a sua saúde, só o tempo necessário para as duas facções em que se dividia o conclave ultimarem um acordo. Aclamado, jogou fora as muletas, tinha saúde de ferro, durou décadas.
João Paulo 1º tinha algo desse papa, circula até hoje a versão insistente de que ele foi assassinado. Mas saúde de ferro mesmo foi a do atual, João Paulo 2º, um papa atlético, masculino, ex-ator (como Reagan), que praticava esqui na neve e teve, dizem, namorada. É o primeiro papa de uma época publicitária.
Apesar da futilidade dos prognósticos, especialmente em se tratando da longevidade de papas, há um clima de fim de feira no Vaticano, um festival de biografias nas estantes. Carl Bernstein, por exemplo, no livro recém-lançado em português, destaca a ação geopolítica de João Paulo 2º na derrubada do comunismo.
Convém manter certa reserva diante do entusiasmo de um jornalista americano por qualquer coisa, que dirá sobre um papa antiesquerdista. De qualquer forma, a reviravolta política realizada pelo atual papa é evidente e vai além da geopolítica: ele derrotou a ideologia que predominava na igreja há 40 anos.
O combate contra o ramo mais radical dessa ideologia, a Teologia da Libertação, equivaleu a uma operação de terra arrasada, conduzida com pulso e método. Sua maior proeza foi obter uma reversão desse porte sem arriscar a unidade da igreja, reforçada em tempo por um perigo comum, as seitas evangélicas.
João Paulo 2º fez, no mundo católico, o mesmo que fariam, depois dele, Thatcher, Reagan e Gorbatchov em seus respectivos países, ao solaparem a crença em estruturas e reivindicações coletivas. Em termos religiosos, o recuo do coletivo significa fatalmente uma volta à dimensão mística e à moral pessoal.
Na esfera laica, onde vivem de fato as pessoas, católicas ou não, o desengajamento significa, ao contrário, um apego crescente às vantagens e prazeres individuais, uma secularização cada vez mais extremada. O papa salvou a sua igreja de ser arrastada pelo naufrágio socialista, mas para colocá-la em novo impasse.
A solução tem sido esquizofrênica, ilustrada pelos dois braços da política de João Paulo 2º, a Opus Dei e o Movimento Carismático. Enquanto a primeira procura instilar um moralismo regressivo na classe média integrada à economia ultracompetitiva, o segundo mergulha suas sondas nos abismos da crendice popular.
João 23 queria uma síntese entre espiritual e terreno, falava-se em terceira via, nem socialismo, nem capitalismo. Nova síntese é obra que João Paulo 2º, após o desmantelamento que realizou, deixa para outro, num mundo que ele ajudou a dividir não mais entre leste e oeste, mas outra vez entre em cima e embaixo.

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