São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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A abolição comparada

PEDRO PAULO A. FUNARI

raras são as obras de brasileiros publicadas no exterior e, ainda mais excepcionais, as que não se referem apenas ao Brasil, como é o caso deste estudo comparativo do abolicionismo. A abolição tem sido considerada muito mais do ponto de vista econômico e político do que de uma perspectiva social e cultural, e o trabalho de Célia Marinho Azevedo cobre também essa lacuna na historiografia sobre o tema (1).
A comparação entre o abolicionista William Lloyd Garrison -nascido no norte dos EUA e alheio à prática da escravidão- e Joaquim Nabuco, antigo senhor que se tornou opositor do sistema, permite observar a precisão estética da autora: "Falando com este senhor, Garrison sentiu-se, provavelmente, um verdadeiro 'outsider', incapaz de compreender a consciência e o mundo do dono de escravos. Pelo contrário, para o futuro líder abolicionista brasileiro, Joaquim Nabuco, a escravidão tinha sempre sido uma realidade tão natural como o ar que respirava.
A escravidão não era uma instituição esquisita da qual, às vezes, ouve-se falar ou encontra-se, face a face, apenas em circunstâncias excepcionais. A escravidão era o seu mundo e moldava sua consciência tão profundamente quanto o fazia para o dono de escravos que Garrison havia encontrado na prisão de Baltimore". Azevedo utiliza-se do conceito de "imaginário" para descrever a criação de figuras, formas e imagens, que permite aos agentes históricos, neste caso abolicionistas, produzirem sua "realidade" e sua "racionalidade". O livro pode ser lido como uma oposição constante entre duas culturas irredutíveis, cujas escravidões e abolicionismos guardam semelhanças externas, em parte derivadas da sua inserção em um contexto internacional comum, e profundas diferenças ideológicas.
Os diferentes caminhos dos dois países na sua emancipação política explicam, em grande parte, os divergentes abolicionismos. A Revolução Americana e a vitória do republicanismo construíram idéias sobre a identidade nacional, a igualdade política e social e a cidadania completamente diversas do compromisso pacífico entre a coroa portuguesa e a nova nação brasileira. Seguindo as idéias desenvolvidas por David Brion Davis, sobre a liberdade interior e a virtude, Azevedo considera que o abolicionismo norte-americano foi o resultado de um pensamento inovador, derivado de uma nova ética de benevolência, cujo ideal de responsabilidade individual substituiu os antigos padrões, em desintegração, da caridade e da responsabilidade social de cunho medieval. Esta filosofia, surgida no Reino Unido, no século 17, confiava na capacidade humana de aprimoramento moral e opunha-se tanto à predestinação calvinista como ao apego ritualístico do catolicismo tradicional.
A este "ethos" americano, opõe-se o caráter patriarcal da sociedade brasileira. Baseada na hierarquia e na proteção derivada das relações de compadrio, a sociedade católica brasileira, fundada no respeito à ordem vigente, que incluía a escravidão, só podia conceber o abolicionismo como... movimento dentro da lei! "Os abolicionistas brasileiros permaneceram, normalmente, determinados a combinar a abolição com o respeito das leis, o que, em um país escravista, equivalia a respeitar os interesses dos donos de escravos." A Guerra Civil Americana e seus mortos representam uma quebra com o Antigo Regime que, no Brasil, nunca houve. A passagem pacífica à emancipação, no Brasil, foi acompanhada pela reforma eleitoral de 1879, que reduziu os votantes de 1.114.066, em 1874, para apenas 145.296, em 1879 (2).
O abolicionismo norte-americano fundava-se na igualdade entre os homens, entre os quais estavam os negros, o que opunha a escravidão, a um só tempo, ao cristianismo e à República. Os senhores, pecadores e infratores da constituição "ipso facto", eram não apenas combatidos, como a própria escravidão nos EUA era considerada a mais detestável, a menos mitigada. É nesse contexto que, naquele país, se cria a noção de uma escravidão mais humana, porque fundada no direito romano, imperante alhures.
O Brasil passa a ser, na verdade, o paradigma dos benefícios de uma escravidão regrada: "No Brasil, no momento (i.e. 1833) a nação com maior população escrava, é ainda melhor. Ali o senhor é obrigado, sob ameaça de pena severa, a dar a seu escravo uma licença escrita para procurar outro dono sempre que o escravo assim o pedir; encontrada a pessoa interessada na compra, o magistrado fixa o preço" (David Child). Com o passar do tempo, o racismo norte-americano, denunciado por diversos abolicionistas, foi contrastado ao paraíso racial brasileiro, cuja fama internacional já era reconhecida em meados do século 19. Como lembra a autora, muitas dessas idéias abolicionistas sobre o inferno racial norte-americano e o paraíso racial brasileiro foram incorporadas pelos grandes estudiosos do nosso século, Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum.
Célia Marinho Azevedo toca, "en passant", num ponto que talvez mereça alguma reflexão: André Rebouças, de origem africana, teve carreira notável graças ao esforço, trabalho, disciplina e estudo. As disciplinas estudadas incluíam latim, francês, inglês e a tradução dos filósofos gregos e romanos. Ora, também nos EUA, escravos, fugitivos e forros privilegiavam, da mesma forma, o estudo do latim e do grego, como demonstrou Shelley P. Haley (3). No contexto norte-americano, o domínio dos clássicos era sinal de igualdade, e quanto ao Brasil? Se aceitarmos a interpretação proposta pela autora, parece razoável supor que, ao contrário, o conhecimento erudito afastasse o indivíduo de ascendência africana dos escravos e libertos pobres e o identificasse como integrante da elite branca. Nesta direção caminha a constatação de Célia Marinho Azevedo a respeito da imagem positiva da África, nos círculos abolicionistas americanos, por oposição à terra de ignorantes, na concepção brasileira predominante. Cleópatra era negra nos EUA, enquanto Rebouças era branco, no Brasil.
Espera-se que a obra seja, o mais breve possível, traduzida e publicada entre nós. Desta forma, o público brasileiro poderá ter acesso a um trabalho cuja repercussão acadêmica já começou nos principais centros internacionais de pesquisa.

NOTAS:
1. Lacuna bem lembrada por Hebe Maria Mattos de Castro em "Estudos Afro-Asiáticos", nº 28, 1995, pág. 102.
2. De maneira independente, era o que também ressaltava Magnus Mõrner em "Ibero-Americana, Nordic Journal of Latin American Studies", nº 22, 1992, pág. 20.
3. Em "Feminist Theory and the Classics", organizado por N. S. Rabinowitz e A. Richlin, 1993, págs. 23-43.

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