São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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Sartre psicanalista

RICHARD T. SIMANKE

no prefácio a um livro recentemente publicado sobre Sartre, Bento Prado Jr. assinala que talvez só agora, quando já se estabelece um distanciamento em relação à presença marcante do autor e às circunstâncias da sua produção intelectual, o sentido da obra sartriana pode ser apreendido de um modo mais isento do aquele que caracterizou as reações imediatas à sua aparição. Assim, o livro de Camila Salles Gonçalves pode ser considerado parte desse processo de retomada de uma obra não mais excessivamente atuante, para ser abordada com objetividade (ainda que, como toda boa filosofia, ela seja sempre atual).
Não se trata, esclarece a autora desde o início, de fazer Sartre medir-se mais uma vez com a psicanálise freudiana, mas de verificar e reconstituir o modo pelo qual a proposta sartriana de uma psicanálise existencial emerge e articula-se com seu projeto filosófico. Este é, pois, um livro sobre Sartre, e não sobre as relações entre Sartre e Freud, embora seu percurso toque nessas relações ocasionalmente.
Um sadio ponto de partida, aliás, pois, embora Sartre -para além das críticas que nunca faltaram- demonstre um certo fascínio pela psicanálise, é flagrante que sua idéia de uma psicanálise existencial pouco deve ao empreendimento freudiano, respondendo, ao contrário, a questões muito específicas de sua própria filosofia. Por aí compreende-se que o livro dedique um espaço substancial à exposição do movimento geral da filosofia de Sartre, antes de buscar situar nesse movimento sua concepção de "psicanálise".
São analisadas, basicamente, duas formulações: o esboço de psicanálise existencial apresentado em "O Ser e o Nada" e o papel atribuído à psicanálise em "Questões de Método". Em seguida, acrescenta-se o comentário sobre o modo como essas duas fórmulas convergem na interpretação da obra e da pessoa de Flaubert, em "O Idiota da Família". São concepções apenas esboçadas, fragmentárias, reconhece a autora, o que por si só justifica o esforço de contextualizá-las e extrair delas a sua significação para o conjunto da filosofia de Sartre.
No primeiro momento, opondo-se à metapsicologia freudiana do inconsciente, Sartre atribui à psicanálise existencial a função de equacionar certos problemas pendentes na sua reflexão filosófica -a saber, o acesso ao sujeito concreto e sua ação individual, para além das generalizações da ontologia fenomenológica (o que permite preservar a indispensável perspectiva da historicidade). Com o mesmo objetivo -contribuir para a elaboração de uma metodologia que permita relacionar o projeto individual com a história-, a psicanálise é assimilada, em "Questões de Método", como uma disciplina auxiliar ao método progressivo-regressivo ali proposto, com a função -por mais vaga que seja, diz Camila Gonçalves- de "descobrir o ponto de inserção do homem em sua classe", relacionando-o com o movimento geral da história.
É munido dessas ferramentas que Sartre empreende a realização da biografia de Flaubert, abordando questões que vão das peculiaridades de sua inserção de classe até o modo como o autor metabolizava literariamente sua biografia, desde sua precoce produção adolescente. Assinalemos, de passagem, que a autora poderia ter explorado certas convergências de método e temática entre essa análise e o exercício autobiográfico empreendido por Sartre em "As Palavras", principalmente no que diz respeito ao significado da primeira infância e ao peso relativo que aí adquirem as figuras materna e paterna, por exemplo.
De qualquer modo, por mais inacabado que tenha permanecido, "O Idiota da Família" pode ser considerado a realização maior da psicanálise sartriana. Se concordarmos com Jean Starobinski -para quem a psicanálise, mais que reduzir a arte à neurose individual, foi capaz de renovar as concepções sobre a relação entre vida e obra, quando se revela uma continuidade compreensível entre uma e outra-, podemos concluir, a partir da análise de Camilla Gonçalves, que Sartre assimilou com maestria pelo menos essa lição da psicanálise "coisista" e "empírica" do doutor Freud.

Richard Theisen Simanke é doutorando na Universidade Federal de São Carlos.

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