São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Uma nova política de desmanche: a privatização dos fígados; Pizzaria CPI; O leitor tem razão; Eremildo, o Idiota cria sua rede: a PauNet; Pedagogia pefelê; Rios de mel; Frase da semana; O Crea encruou

ELIO GASPARI

Uma nova política de desmanche: a privatização dos fígados
O novo ministro da Saúde, Carlos César de Albuquerque, terá que descascar um abacaxi logo depois de sua posse. Amadureceu em São Paulo uma proposta de tunga de fígados de cadáveres em benefício de meia dúzia de equipes médicas particulares, à custa dos cidadãos que morrem nas filas de espera de um transplante.
Até agora se conviveu com o desmanche social e com a privatização do Estado. Um negócio chamado Consenso Estadual para Transplantes de Órgãos, surgido em outubro passado, destina-se a privatizar o desmanche de gente. Por inédito, é coisa que deveria atrair a atenção do canibalismo social de todo o mundo.
Anestesiaram a lei
Desde 1993, a lei manda que os órgãos retirados de cadáveres sejam transplantados em pacientes listados por ordem cronológica de entrada, em centrais de notificação estaduais. Coisa simples. O cidadão precisa de um fígado. Seu nome vai para a lista e espera a vez. Com ligeiras variações, é assim que se trabalha em todo o mundo.
Em São Paulo, onde se realizam 95% dos transplantes de fígado do país (120 por ano), essa lei não pegou. E não pegou porque uma política pública entrou em choque com interesses privados.
O primeiro transplante de fígado da história da medicina brasileira foi feito no Hospital das Clínicas, em 1985. Lá já se fizeram 178 transplantes, 49 só neste ano. O HC está fechando 96 com um índice de sobrevida de 95%, no topo da qualidade internacional. (Cada cirurgia dessas custa ao hospital entre R$ 20 mil e R$ 40 mil. Ao paciente, nada. A renda familiar média das pessoas operadas está em torno de dez salários mínimos.)
A partir de 1991, formaram-se em São Paulo equipes privadas com capacitação para esse tipo complexo de cirurgia (12 horas de duração). Elas cobram de R$ 100 mil a R$ 220 mil. Um médico do HC ganha no máximo R$ 4 mil por mês. Um cirurgião de equipe privada cobra até R$ 25 mil por transplante. A literatura médica nacional não conhece os índices de sobrevida conseguidos pelas oito equipes privadas que operam em São Paulo. Neste ano, elas realizaram 70 transplantes.
Até aí, tudo bem. A mão invisível de Adam Smith faz a seleção. Quem quiser ir para o HC, vai. Quem não quiser se misturar com a escumalha dos hospitais públicos, convoca uma equipe privada e pede o transplante.
Mas cadê o fígado? Nessa hora é preciso voltar a conviver com a choldra. Deve-se buscar uma pessoa com morte cerebral, tirar o fígado e começar a transplantá-lo em menos de oito horas.
Pela lei, bastaria consultar a lista, conferir as compatibilidades biométricas e sanguíneas e chamar o primeiro da fila. Como nem sempre ele tem R$ 100 mil, a lei foi às favas.
Criou-se um mecanismo pelo qual os fígados disponíveis são rateados. Em 4 dos 7 dias da semana vão para o HC. Nos demais, para a rede privada. Esse critério subverte qualquer política médica. Em vez de alocar o órgão ao paciente (que espera pelo fígado), aloca-o a uma equipe (que espera pelo ervanário).
O resultado da brincadeira é a criação de dois tipos de doentes. Um, sem dinheiro, fica na fila do HC, onde a cada ano morrem 50 pessoas. Outro, com R$ 100 mil, recorre às equipes privadas. Elas oferecem transplantes em 15 dias, enquanto o HC nunca promete menos de quatro meses, por falta de órgãos.
Já houve casos de pacientes da fila do HC que receberam a visita de corretores oferecendo serviço mais rápido condicionado ao exame da saúde financeira da família.
Isso era pouco.
Os hepatocratas
Inventaram o Consenso. Uma beleza de jogada. Produziu-se um documento que, pelo nome, insinua uma proposta consensual. Ele resultou de uma reunião ocorrida no Hotel Meliá, na qual enquanto o HC tinha dois representantes (para 40% dos transplantes) uma das oito equipes médicas particulares encaçapou três votos (com pouco mais de 5% das cirurgias). A proposta foi rebarbada por um representante do HC. Ele pediu que sua discordância fosse registrada no documento. Neca. O Consenso escondeu o dissenso do acionista público e majoritário.
O Consenso da Hepatocracia é interessante. Cria um sistema pelo qual metade dos fígados vão para uma lista única, enquanto a outra metade deve ser rateada entre cinco instituições, todas públicas.
Seria uma beleza se não fosse uma mistificação. Três dessas instituições simplesmente não transplantam fígado, uma quarta faz dois transplantes por ano. E o que farão com os órgãos? Vão repassá-los a "hospitais associados".
E quem são esses hospitais? São as equipes privadas.
Esse desmanche rola nos corredores da burocracia médica há mais de seis meses. Se não for rápida e publicamente repudiado, inibirá as famílias dos potenciais doadores.
Uma médica da Secretaria da Saúde deu a um dos chefes das equipes privadas que catituava seus fígados o melhor resumo do problema e, talvez, do prognóstico:
- Se o meu filho bater com o carro, teu hospital não vai cuidar dele, a menos que eu mostre que posso pagar. Pois se o meu filho, acidentado, morresse num hospital público e você aparecesse por lá pedindo que eu te doasse o fígado dele, sabe o que eu faria? Te dava um tiro na cara.

Pizzaria CPI
Se ninguém reclamar, vão congelar a pizza da CPI dos títulos estaduais lançados para pagar precatórios inexistentes e comissões existidas. O Palácio do Planalto ainda não a incluiu na agenda da convocação extraordinária do Congresso. Argumenta que o problema não é dele.
Resta saber se o senador José Sarney levará o assunto a FFHH, pedindo que estenda à CPI a tramitação preferencial que sua Casa deu à emi$$ão do papelório. Se pedir, leva.

O leitor tem razão
O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, por decisão unânime de seus membros, protesta contra o uso feito aqui do corpo do visconde de São Leopoldo, numa montagem em que lhe foi colocada a cabeça do governador Paulo Afonso Vieira, de Santa Catarina.
São Leopoldo (1774-1847) começou sua vida pública montando as alfândegas do Rio Grande do Sul e foi o primeiro presidente daquela província. No seu mandarinato, iniciou-se o processo de colonização do vale do rio dos Sinos. Era homem de bons modos e boa cultura. Foi muito atacado quando passou pelo ministério, mas nunca lançou papéis da dívida pública por conta de precatórios inexistentes.
Foi uma injustiça emprestar o seu corpo à cabeça do governador Paulo Afonso.

Eremildo, o Idiota cria sua rede: a PauNet
Eremildo é um idiota. Ele acha que a reunião da Organização Mundial do Comércio, que se realiza em Cingapura, é uma armação do prefeito Paulo Maluf para criar shopping centers nos seus projetos habitacionais.
Ele se encantou com o último discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, cuja reeleição apóia, porque acredita que ganhará alguma coisa com isso.
FFHH condenou a idéia dos países desenvolvidos (leia-se Estados Unidos) de impor restrições comerciais a produtos fabricados com a exploração do trabalho infantil. O presidente reconheceu que há por cá trabalho escravo de crianças (nas carvoarias de Mato Grosso, por exemplo), mas informou que seu governo está tomando medidas para erradicá-lo. Explicitou uma delas: a criação de um grupo de trabalho para fiscalizar o assunto. Como Eremildo é a outra pessoa capaz de acreditar que um grupo de trabalho trabalha, ficou radiante.
O idiota acredita que poderá ganhar algum dinheiro com a política de direitos humanos de FFHH. No mesmo discurso, o presidente louvou a preocupação do seu governo com a carcaça de seus cidadãos e lembrou que o Ministério da Justiça tem uma página na Internet, onde os interessados podem encontrar qualquer informação sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos. (http://www.mj.gov.br)
O idiota teve a idéia de criar a PauNet, ligando todas as delegacias policiais do Brasil à rede mundial de computadores. Ele alugará um micro a cada preso e, sempre que eles forem levados aos interrogatórios, ligarão seus computadores à corrente elétrica. À menor violação de seu direitos, entram na linha eletrônica do Ministério da Justiça.
Eremildo testou a página que FFHH louvou e acredita que o presidente deve dar um brilho na produção, porque em 17 minutos de pesquisa, tentou saber quais são as ações do governo em defesa dos direitos humanos de seus futuros clientes.
O idiota aprendeu que o governo pretende "propugnar pela aprovação do projeto de lei 4.716-A/94, que tipifica o crime de tortura". O quadrinho informando o início previsto para essa ação está em branco. Obviamente, o outro quadrinho, prevendo o fim da ação, também está.
Depois ensinaram-lhe que se está mapeando programas de rádio e TV que fazem a apologia da tortura. Os dois quadrinhos estavam em silêncio e desta vez ficou em branco também aquele que informa o "estágio atual da implementação".
O idiota foi à terceira e última ação. Ela se refere ao apoio que o governo pretende dar à aprovação de um protocolo adicional à convenção contra torturas. Desta vez estava tudo em branco.

Pedagogia pefelê
O deputado Paes Landim (PFL-PI) resolveu desatar o nó da briga das escolas com os alunos que não pagam as mensalidades em dia. Enfiou um artigo curto e grosso no projeto que reescreve a medida provisória que regula o assunto: quem atrasar dois meses está na rua.
O deputado tem dificuldade para entender como um pai pode ficar dois meses sem dinheiro para pagar a escola do filho. Afinal, na última eleição a banca lhe deu R$ 260 mil. Com os juros desse ervanário, paga-se toda a vida escolar de quatro estudantes num bom colégio de qualquer cidade do país.
Se as famílias inadimplentes tivessem a imaginação de Landim, suas crianças não passariam por vexames. Em junho passado, ele ajudava um par de amigos a convencer a viúva de que deveria resgatar os títulos da dívida pública emitidos no governo Campos Sales (1898-1902). Papéis que eram vendidos a R$ 50 em antiquários, valeriam bilhões nas malocas da privataria. Basta 1% disso para pagar a anuidade de mil estudantes na Universidade de Harvard.
Se um jovem deve ser expulso porque não paga a escola, o que se deveria fazer com um deputado achacador de empreiteiro? Landim talvez possa dizer.

Rios de mel
O ministro Sérgio Motta abriu um departamento de ficção científica no seu mafuá. A Telerj anunciou que em 1999 não faltarão telefones no Rio de Janeiro. Em 1997 sobrarão linhas telefônicas na Barra da Tijuca.
Tudo bem, mas em janeiro passado a máquina de propaganda do ministro e do governador Marcello Alencar informou que em novembro os moradores da Barra da Tijuca conseguiriam suas linhas em 24 horas. Era o Projeto Barra da Tijuca. Novembro, como se sabe, já passou.
São os "rios de mel" de que tanto gosta de falar o ministro Pedro Malan.

Frase da semana
Do deputado Antonio Delfim Netto, de quem o ministro Luiz Carlos Santos anda dizendo horrores pelas costas:
- Primeiro nós tivemos a Teoria da Dependência e a Teologia da Libertação. Agora, com a mesma turma, temos a Teologia da Especulação e a Dependência sem Teoria.

O Crea encruou
São muitas as pessoas convencidas de que todos os problemas do Brasil se relacionam com a má qualidade da cultura daquilo que seria um povo de poucas letras. Para quem sofre desse tipo de demofobia, não tem a menor importância o fato de o brasileiro já ter vivido com três moedas (cruzeiro, URV e real), enquanto os franceses levaram uma geração para se familiarizar com o novo franco.
Quem acredita nessa suprema competência do andar de cima, bem que poderia refletir sobre o que está acontecendo na eleição nacional dos conselhos regionais dos engenheiros, arquitetos e agrônomos. (É coisa de gente grande, não só porque registram e fiscalizam 500 mil profissionais, como também mexem com razoável dinheirama. O Crea de São Paulo tem um orçamento de R$ 26 milhões.)
As eleições aconteceram no dia 29 de outubro, mas por conta de irregularidades, chicanas e recursos judiciais, ainda não se conseguiu terminar a apuração nos Crea de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Santa Catarina.
De lá para cá, os Estados Unidos elegeram e proclamaram um novo presidente. O brasileiros (inclusive os favelados) elegeram os prefeitos de suas cidades, em alguns casos com dois turnos de votações.

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