São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Subversão e "superversão"

ROBERTO CAMPOS

"A deterioração de qualquer governo começa com a decadência dos princípios sobre os quais se fundou." Montesquieu
Lincoln Gordon, o embaixador americano durante o período Goulart, quando este guindava esquerdistas às altas esferas do poder (na esperança de, imitando Getúlio, implantar um Estado Novo com sinais trocados), cunhou o vocábulo "superversão". É a desestabilização política vinda de cima, em contraste com a "subversão", que vem de baixo.
O que FHC está fazendo, ao insistir na votação imediata da emenda da reeleição, é uma "superversão" da agenda legislativa.
Há urgências e prioridades mais importantes que a liturgia da eleição presidencial, a realizar-se somente em 1998:

O que é mais importante
Prioridades no plano econômico
-Reforma previdenciária
-Reforma administrativa
-Reforma fiscal
-Aceleração das privatizações
-Regulamentação da abolição dos monopólios estatais

Prioridades no plano político
-Reforma do Poder Legislativo
-Voto distrital misto
-Fidelidade partidária
-Redução da proliferação de partidos no Congresso
-Estatuto da desincompatibilização

A disfuncionalidade de nossa democracia se exibe também no Judiciário. Há intermináveis delongas processuais, e a ausência do "efeito vinculante" das decisões do STF gerou, nas instâncias inferiores, a "indústria das liminares".
Pode-se dizer, aliás, que hoje é mais urgente operacionalizar-se o Legislativo que o Executivo. Este, bem ou mal, funciona. Mas, sem reformas políticas, o Poder Legislativo continuará pesado e lento. Basta lembrar que existem 64 medidas provisórias e 80 vetos não apreciados. A MP da privatização foi reeditada 43 vezes, e a de complementação do Plano Real, 18 vezes. O Congresso é mais reativo que ativo. Há 16 partidos representados na Câmara, dos quais alguns refletem apenas regionalismos ou exotismos ideológicos, prolixos de voz e magros de voto. Nesse quadro, é quase miraculoso que o presidente Luís Eduardo, competente cobrador de tarefas, tenha conseguido fazer tramitar várias emendas constitucionais tão fundamentais quanto controversas.
As urgências políticas são ainda mais gritantes que as econômicas. A Previdência Social está falida e só pagará o 13º salário com empréstimos do Banco do Brasil. Outros países latino-americanos já acordaram para a inviabilidade do sistema de repartição, debilitado pelas aposentadorias precoces, pelo alongamento da vida média e pelo crescimento da economia informal não-contribuinte. Estão privatizando a Previdência Social, para evitar a funesta desvinculação entre benefícios e contribuições, e a fim de disponibilizar poupança para investimentos. A reforma administrativa é necessária para flexibilização da estabilidade, abolição do absurdo "regime único" do funcionalismo e correção dos abusos salariais. Mais premente que a reeleição, é certamente a crise fiscal, dado que o déficit atingirá pelo menos 4,5% do PIB, só financiável a juros punitivos para o setor privado. Além da simplificação fiscal, urge uma solução patrimonial: liquidação dos monopólios estatais para cobertura das megadívidas do Tesouro.
É lamentável a "superversão" de prioridades pelo açodamento e casuísmo da emenda da reeleição, maquiavelicamente cronometrada para barrar a reeleição de Maluf e abrir espaço para a esperada vitória do PSDB no miolo São Paulo/Rio/Belo Horizonte. O tiro saiu pela culatra, com a fragorosa derrota dos cupinchas palacianos...
Em meu longo calvário burocrático e político, nunca deixei de admirar a capacidade de sobrevivência dos dinossauros estatais, mesmo face aos raios cósmicos da modernidade. Duas palavras perigosas se infiltram no vocábulo corrente: "parcerias" e "contratos de gestão". Despojados dos monopólios, os dinossauros buscam vias alternativas para manter poder, funcionalismo e privilégios. São as "parcerias", que não significam privatização e sim exatamente o contrário. Significam a "estatização da poupança privada", de vez que o governo retém controle majoritário. A Petrossauro, por exemplo, quer parcerias no gasoduto Brasil-Bolívia, guardando para seus funcionários o privilégio da gestão. FHC cometeu aliás uma ilegalidade. Extinto o monopólio pela Emenda Constitucional nº 9, no interregno até a votação de legislação complementar, continua vigorando a lei das licitações, pelo que a adjudicação do gasoduto teria de ser precedida de licitação pública.
Alguns governos estaduais falam em "privatização", quando na realidade pensam em "parcerias", isto é, em cooptar capital privado, subordinado e minoritário. Isso é absurdo porque o insumo mais escasso no governo é precisamente a capacidade gerencial. É o caso, por exemplo, da venda de participações minoritárias da Cemig. Agora, na Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), o governo estadual quer um "sócio estratégico", capaz de trazer capital e inovações tecnológicas, mas retém maioria na diretoria e conselho de administração. A transferência de gestão por acordo de acionistas pode sofrer impugnações judiciais até que haja autorização legislativa. Nessas condições, o "sócio estratégico" arrisca-se a ser apenas um otário de luxo.
A "parceria" tornou-se uma arma satânica dos estatólatras. Os governos ficariam com dois instrumentos para expandir sua atuação na economia; um, tradicional, os tributos, e outro, a sucção da poupança privada para alimentar indefinidamente suas burocracias administrativas e sindicais.
A outra malandragem são os "contratos de gestão". Estes só são admissíveis nas atividades em que haja possibilidade de competição entre operadoras estatais e privadas, nacionais e estrangeiras. Contratos de gestão entre o governo e dinossauros monopolísticos, como a Petrossauro e a Telessauro, são uma bobagem. Os órgãos governamentais encarregados do controle (Ministério de Minas ou das Comunicações) são tripulados por funcionários das empresas reguladas, que esperam voltar ao ninho original e beneficiar-se de suas generosas aposentadorias. Sabe-se, por exemplo, que a maioria do Departamento Nacional de Combustíveis é de funcionários da Petrossauro, que priorizam os interesses da empresa e não os desejos do consumidor. Na diretoria das novas agências regulatórias, que se criarão para supervisionar a abolição dos monopólios, não devem figurar funcionários de estatais, a não ser após um período de descontaminação de seus instintos corporativistas.
Muito mais urgente que o tema da reeleição é pôr-se cobro à insuportável degradação dos serviços telefônicos, que desencoraja investidores, neurotiza o usuário e reduz a produtividade de todos.
A emenda constitucional da abolição do monopólio da telefonia foi aprovada em agosto de 1995. Transcorridos 17 meses, nenhum edital de privatização foi publicado. E a gestão orçamentária do setor é um desastre. Enquanto a telefonia básica está em pedaços, com prejuízos para o fax, transmissão de dados e futuras interconexões, o Ministério das Comunicações investe pesadamente em telefonia celular analógica, campo para o qual existem numerosos investidores potenciais, com tecnologia mais moderna. Será que esse esquisito desempenho tem algo a ver com o desejo do governo de preservar o potencial de barganha das estatais para negociar a emenda da reeleição, que passou de detalhe eleitoral a panacéia de salvação nacional? Essa suspeita me leva a recusar qualquer emenda prorrogacionista antes de substancialmente completado o programa da privatização.

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