São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Heróis e bandidos

MARCELO LEITE

Qualquer pessoa, mesmo não sendo jornalista, tem uma noção clara de que o assassinato de Leonardo Pareja é notícia de destaque. Ninguém discordaria também de que o sequestro de um menino por dois anos deve ir para as primeiras páginas -desde que tenha de fato ocorrido. Bem mais difícil de entender é por que a imprensa ajuda a fazer do primeiro um herói, embora culpado, e do segundo um monstro, ainda que inocente.
É bom deixar claro, de pronto, que não credito só à imprensa a entronização de Pareja. Discordo, portanto, da dezena de leitores que procurou o ombudsman esta semana para protestar contra a Folha. Eles estão convencidos de que o jornal é ator central dessa farsa de endeusamento, por ter dado a notícia em sua Primeira Página com título de quatro colunas e foto do cadáver.
Sem dúvida, a Folha e seus concorrentes, assim como antes deles a TV, embarcaram com tudo no "carisma" de Pareja. Na realidade, não havia carisma algum. Pareja foi uma espécie de Collor do submundo, em sua impostura.
O que jornalistas imediatamente reconheceram foi paradoxo, antiestereótipo, contradição em termos -numa palavra, notícia: um branco, com boa instrução, investido no papel que todos reservam aos escuros e pardos em geral. Bandido. Não tão qualificado quanto Hosmany Ramos, mas bandido.
Puro entretenimento
Daí para a frente, cessou o jornalismo e teve início a mitologia. Nessas horas, a imprensa dificilmente escapa do entretenimento. Em especial quando há reféns e perseguições, como nas duas grandes aventuras do moço.
Era notícia em estado bruto, cuja instantaneidade logra afastar toda reflexão. É nesse momento que se reconhecem os grandes jornais: aqueles capazes de oferecer resistência à escalada emocional, encontrando vontade e disciplina para voltar à informação.
A Folha manteve-se relativamente fria, ao relatar a morte de Pareja. Até a publicação da foto de um cadáver na Primeira -sempre questionável, num jornal de prestígio- pode ser defendida. Além da enorme repercussão, era uma imagem serena, nada chocante. Mas o espaço dedicado ao tema na parte interna do jornal, pelo menos três páginas, foi meio exagerado.
Apesar de todo esse destaque, aFolha ainda não contribuiu para esclarecer dois dos muitos aspectos intrigantes desse episódio: por que, afinal, as pessoas estão tão necessitadas de heróis da extração de Pareja e por que justamente uma organização de defesa de direitos humanos (Tortura Nunca Mais) cometeu o desatino de cobrir o caixão do bandido com uma bandeira.
Há muitas maneiras de colaborar na construção de mitos. A função mais nobre da imprensa é destruí-los.
Espancado e humilhado
Na crítica interna da edição do dia 4, quando saiu a notícia do suposto sequestro do garoto Dayvison, escrevi: "Em todos os jornais, são muito esquisitas as versões tanto da família quanto do acusado. Não dá para entender por que o menino foi sequestrado, muito menos por que por tanto tempo".
Reproduzo essa nota não para sugerir qualquer clarividência, mas para mostrar que bastava um pouco de bom senso para desconfiar daquela história. Só que ela era boa demais para não ser verdade, não ser notícia.
Essa credulidade de jornalistas quase custou a vida do suspeito, Geovan Joaquim da Silva. Ele foi espancado por companheiros de cela imbuídos de indignação essencialmente indistinguível da que assalta pessoas "de bem", fora das cadeias.
Não será esta a primeira vez que alguém lembra o caso Escola Base, em conexão com o pesadelo de Silva. Outros já o fizeram, para ressaltar que na prática se aprendeu bem pouco com aquele tão hipócrita quanto monumental exercício de autocrítica.
Vou reproduzir também trechos da carta que recebi do leitor Richard Pedicini sobre esse novo episódio de incúria policial e jornalística. Ele fala com algum conhecimento de causa, pois foi uma das vítimas do caso Escola Base. Embora suas palavras se dirijam ao noticiário da Folha, elas se aplicam a toda a imprensa.
Desculpar-se
"De quem é a culpa? Eu completaria o adágio de que para que o mal tenha sucesso é necessário apenas que os bons não façam nada, (dizendo que) é necessário que os bons não façam o bastante. Essas tragédias são causadas por policiais e jornalistas (...), mas isso não significa que somente policiais e jornalistas sejam responsáveis por uma cura. (...)
"Por dois anos Geovan ganhou o pão com o suor de seu rosto, capinando sob um sol tropical, para criar o menino. Vocês fariam tanto assim? Por quantas crianças que fugiram de pais violentos vocês passam a cada noite, em seu caminho para casa? A Folha periodicamente chama a atenção para o problema dos menores abandonados, mas será que todo seu falatório fez tanto quanto Geovan para resolver o problema? (...)
"A Folha foi correta ao apresentar 'o outro lado' e ao rotular as acusações como tais. Apesar disso, as acusações cuidadosamente rotuladas que vocês publicaram incluíam que ele tinha raptado uma criança por vingança, mantendo-a acorrentada e alimentando-a com peixe cru por dois anos, além de aterrorizar vizinhos para obter silêncio, assassinar uma testemunha, usar drogas e beber habitualmente em excesso.
"E, finalmente, vocês publicaram a acusação, proveniente de uma testemunha totalmente desacreditada, de abuso sexual de menor (onde será que já ouvi falar disso?). Dá para acreditar que algum repórter dos que falaram com D. teria deixado de lhe perguntar, com maior ou menor discrição, se tinha sido abusado sexualmente? O menino claramente diz para as pessoas o que elas estão prontas a acreditar, e repórteres acreditariam em qualquer coisa. (...)
"Geovan saiu da cadeia com as roupas nas costas, uma cicatriz costurada com oito pontos e um jogo completo de cortes e hematomas, voltando para uma casa que tinha sido saqueada durante sua ausência. Além do mais, perdeu seu bom nome, sua privacidade, sua tranquilidade. Pouco, mas ninguém pode perder mais do que tem. Restou-lhe sua vida -mas como ele foi violentado e espancado e a Aids prevalece nas prisões, talvez nem isso. A imprensa e o governo exerceram força descomunal sobre um homem bom, simples e indefeso, destruindo-o.
"O que a Folha pode fazer? Bem, o que suas mães lhes diziam para fazer, quando se prejudica alguém, intencionalmente ou não? O que você diz para suas filhas num caso destes? Vocês poderiam... desculpar-se."

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