São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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DESTINOS

Esses extremistas são uns safados, querem acabar com tudo
Carlos - Está muito bem. Mas precisamos vigiar bem, porque pode ser um espião qualquer. Você sabe, os delegados já estão de olho em cima de nós.
Ruy - Aquele eu acho que não. Você vê, é um operário.
Carlos - Isso não há dúvida que afasta um pouco a possibilidade de ele ser um espião. Mas é preciso ver se ele é mesmo operário. Mesmo sendo operário é preciso, entretanto, que a gente fique de olho. Nossos inimigos na luta que mantêm contra nós usam de todos os meios. Um deles é corromper pelo dinheiro elementos operários fracos e fazê-los praticar esse crime monstruoso de traição de seus próprios companheiros, de sua própria classe.
Ruy - É, veremos.
Carlos - Voltando ao negócio da fábrica, vocês não prepararam nenhum protesto, nenhuma greve, nada?
Ruy - Já se falou nisso. Mas por enquanto é impossível. A fábrica está vigiadíssima, e o gerente vive fazendo ameaças. Que quem pensar em greve perde o emprego e vai para a ilha e mais uma porção de coisas. Os moços é que estão mais animados e dispostos. Precisamos fazer mais reuniões para tratar do assunto.
Carlos - Se você quiser, pode trazer o pessoal aqui em casa.
Ruy - Eu vou ver isso. Ah! Há uma coisa interessante, sabe Carlos? O gerente, temendo a greve, diminuiu o ordenado só de metade dos operários, pensando assim criar na fábrica duas correntes. Uma querendo a greve e a outra desinteressada dela. Mas o pessoal não topou essa tapeação. Estão todos firmes. Só existe um grupinho de safados, que sempre há em toda parte, que está nos espionando e fazendo uma propaganda derrotista contra a greve. Mas nós damos um jeito nessa gente.
Carlos - É, e olha aqui, nós precisamos da um jeito também de realizar logo um congresso de jovens. A coisa precisa sair mesmo. Dentro de três meses nós precisamos instalar o primeiro congresso brasileiro de jovens operários e estudantes.
Ruy - A coisa está caminhando. Na fábrica já há uma delegação encarregada de representar os jovens de lá.
Carlos - Lá na faculdade também o bloco está pronto.
Ruy - O que anima e dá força à gente no meio de tanta miséria é ver que a "coisa" está caminhando numa rapidez espantosa.
Carlos - Olhe aqui. Vamos jantar num boteco qualquer da cidade onde possamos conversar a vontade. O Álvaro vai trazer hoje um sujeito aqui que como caso clínico e social é muito interessante, mas que nos vai fazer perder tempo.
Ruy - Quem é? É aquele tal dos cabarés de que você fala tanto?
Carlos - É o tal mesmo. Vamos?
Ruy - Vamos embora.
(Saem. Pausa um instante. Entram Álvaro e Lauro.)
Álvaro - Não vi onde foi o Carlos. Eu deixei ele aqui em casa esperando um amigo que também vinha jantar. Vai ver que ele não quis se encontrar conosco.
Lauro - Eu lhe explico, Álvaro. O tal amigo de seu irmão com certeza é um desses extremistas com quem ele vive andando. E esses extremistas são uns safados. Querem acabar com tudo, Álvaro. Com dinheiro, com cabaré, com família.
Álvaro - Puxa.
Lauro - E sabe com que mais? Você não pode imaginar com mais o que eles pretendem acabar.
Álvaro - Com o quê?
Lauro - Com as mulheres da vida, com as pensões gostosas etc.
Álvaro - O quê? Acabar com a zona chique? Mas isso é uma infâmia. E como é que a gente vai trepar então?
Lauro - Ah! Eles fazem o tal amor livre, você trepa com quem você quiser.
Álvaro - Não! Isso é bom.
Lauro - Bom? Mas você acha bom que um sujeito qualquer encontre sua irmã, arranque-lhe a calça e pronto.
Álvaro - Oh! Mas vão fazer isso com nossa família também? Ah bem, eu pensei que fosse só com essas garotas que andam por aí, do comércio, das fábricas, que afinal não têm nada a perder. Mas com nossas irmãs também. Isso é uma patifaria.
Lauro - São essas coisas todas que me fazem de vez em quando ter vontade de aderir ao integralismo. Mas qual, por enquanto eu acho que ainda não estamos em perigo. Podemos continuar sossegados nessa nossa vidinha gostosa, não é? (ar canalha.)
Álvaro - Sem dúvida, Lolô.
Lauro - É, o que nós por enquanto temos que fazer é cumprir com nossas obrigações. Tomar nosso uísque, amar as amiguinhas e os amiguinhos e arranjar os cobrinhos para tudo isso. A propósito, Álvaro, você precisa dar um jeito. Eu preciso de mais uns "moneys".
Álvaro - Mas, Lauro, ontem mesmo eu já lhe dei uns cobres. Agora você já quer mais.
Lauro - (palavra ilegível no original) Álvaro. Você precisa ver que essas nossas coisas custam caro. Você pensa que é barato um troço que as farmácias não vendem nem com atestado médico.
Álvaro - Eu sei que custa caro, mas, afinal de contas, você leva dinheiro pra burro e me traz só um pouquinho de cocaína.
Lauro - Psiu. Olha esta provocação, que diabo. Não fale assim alto.
Álvaro - Eu falo alto, sim. Isso é uma roubalheira, é uma infâmia, você está me explorando.
Lauro - Se acalme, Álvaro. Você quer, eu tenho um pouquinho aqui ainda.
Álvaro - Cadê? Dá.
Lauro - Espere. Mas é de outra pessoa. Você precisa me dar dinheiro para eu descontar depois.
Álvaro - Está bem. Tá um cheque. É o último dinheiro que eu tenho no banco. Mas tá... tá. Dê agora, dê.
Lauro - Espera, aqui não. Vamos para seu quarto, o seu irmão pode chegar.
Álvaro - Vamos, vamos.

3º ato

O palco dividido em duas partes: à esquerda do público uma mesa com livros e uns bancos toscos; à direita, uma cadeira preguiçosa e uma mesinha com copos cheios de uísque. À esquerda, Carlos, Ruy e mais pessoas; à direita, Álvaro, Lauro e um outro falam em surdina.

Carlos - Então assim fica tudo bem combinado. Depois de amanhã já ninguém entra na fábrica. A brigada de choque contra os fura-greves já está organizada. Os estudantes já nomearam uma comissão para socorrer as famílias dos grevistas em caso de falta de comida. (Continuam falando e gesticulando um pouco.)
Álvaro - Mas eu não posso mais, Lauro. Eu não tenho mais dinheiro e já fiquei devendo quase três contos só nessa última semana.
Lauro - Mas precisamos dar um jeito nisso. É preciso, Álvaro, arranjar dinheiro para podermos comprar a coisa gostosa. Se você pode fazer aqui um negócio com o amigo Laurencito.
Laurencito - É, eu posso adiantar um pouco para os amigos, mas os amigos, é claro, entre pessoas de negócio deve estar tudo claro, os amigos devem assinar pequeno compromisso.
Lauro - Ótimo, Álvaro, você assina aí esse papel e fica tudo resolvido.
Álvaro - Está bem, está bem, dá aqui, eu assino.
Ruy - O comício vai ser feito quando tiver reunido um grande número de operários na porta da fábrica. Se a polícia tentar dissolver nós resistiremos.
Um dos presentes - O armamento já foi todo distribuído.
(Ouvem-se palmas)
Carlos - Quem será?
(Um dos indivíduos se afasta um pouco. Entram um inspetor e um guarda civil.)
Inspetor - Estão todos presos.
O que se afastou - Os principais são esses. (Aponta Carlos e Ruy.)
Ruy - Canalha! (Avança; o grilo o segura.)
Inspetor - Pra Delegacia. (Saem todos.)
Laurencito - Assim fica tudo bem resolvido.
Álvaro - Onde está o adiantado, então?
Laurencito - Tá. (Estende um pedaço de papel branco.)
Álvaro - Oh! Oh!
(O pano fecha e levanta novamente.)
Voz - Três meses depois.
(Do lado esquerdo - Ruy, Carlos e outros.)
Carlos - (para um dos do grupo.) O congresso dos jovens se instala amanhã. Apesar dos 20 dias que estivemos presos, está tudo organizado.
Outro - Já?
Ruy - A polícia está preparando um golpe, mas nós vamos instalar o congresso de surpresa.
Carlos - Mesmo que eu, Ruy e outros sejamos presos, o congresso continua.
Ruy - Será a mesma coisa que aconteceu por ocasião da greve. Devido a uma traição, a polícia nos prendeu, e ficou certa de que a greve não arrebentaria. No dia seguinte a fábrica apitou inutilmente. Os operários vieram até o portão, mas para protestar contra nossa prisão.
Outro - Quem presidirá a sessão?
Ruy - O Carlos, já ficou resolvido.
Álvaro - Não posso mais, isso é o cúmulo.
João - (entrando.) Seu Álvaro, tem aí uma pessoa que quer falar consigo.
Álvaro - Quem é?
João - Não sei, não senhor.
Álvaro - Diga que não estou.
(João sai.)
Álvaro - Onde é que eu posso arranjar dinheiro? Onde? Não tenho. Não posso mais. Eu preciso.
João - Ele insiste em ver o senhor.
Álvaro - Diga que não estou, que eu não recebo. Que inferno que está isso. Quem é afinal?
Agiota - Sou eu. O senhor precisa me pagar senão eu posso até mandá-lo para cadeia.
Álvaro - Eu pra cadeia. Eu. Não! Não!
Agiota - Não adianta fazer barulho. Eu tenho aqui um documento.
Álvaro - Que documento?
Agiota - Assinado pelo Laurencito.
Álvaro - Documento o quê? Não pago. Vá embora. Canalha.
Agiota - (saindo.) Amanhã veremos seu cocainômano.
Álvaro - Oh, oh!
(O pano desce.)
Uma voz - No dia seguinte.
(Lado esquerdo - uma mesa - Carlos de pé fala.)
Carlos - Companheiros -o proletariado jovem e os estudantes brasileiros... (continua gesticulando.)
Álvaro - (sentado acabrunhado.) Eu enlouqueço. Nem enxergo mais nada. Onde está o Lauro? Lauro! Lauro!
João - O senhor está sentindo alguma coisa?
Álvaro - Lauro, Lauro. Quero cocaína. Lauro eu morro. Lauro! Eu me mato sim!! Mato! Mato! Oh! Oh! Mato! (Entra gritando isso.) (Ouve-se um tiro - Álvaro volta cambaleando e gemendo se atira no chão. João chega e olha estático esse quadro.)
Carlos - Companheiros, a nossa hora se aproxima. Companheiros -a nossa vida começa. (Começo do hino da Aliança na surdina.)

Este texto foi originalmente publicado nos "Cadernos Cemap" (Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa) em julho de 1985.

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