São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Um intelectual de múltiplas faces

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar."
Essa passagem daquele que talvez seja o texto e combate mais célebre de Paulo Emilio Salles Gomes, "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento", de 1973, coloca o autor no centro de um debate que não era seu, mas da sua geração. Geração que, como já disse o filósofo Paulo Arantes, "aprendeu a pensar refletindo sobre o Brasil", embora e em grande medida porque tivesse antes de tudo vocação cosmopolita.
Assim como Antonio Candido em relação à literatura e Décio de Almeida Prado em relação ao teatro, Paulo Emilio passou a vida procurando entender o esforço de implantação e afirmação do cinema numa sociedade malformada como a brasileira.
Esforço que Paulo Emilio não apenas descreveu em vários momentos, mas do qual participou ativamente quando criou a Cinemateca Brasileira e o curso de cinema da Universidade de Brasília, para citar apenas dois momentos de sua trajetória militante.
Depois de um relativo descaso por que passou sua obra dentro da academia logo após sua morte, em 1977, descaso sintomático se posto em contraste com a influência que ele havia exercido sobre as gerações dos anos 60 e início dos 70 na ECA, Paulo Emilio está voltando a ser objeto de interesse.
A prova mais eloquente dessa curiosidade renovada pelo autor foi o recente evento "Paulo Emilio Ano 80", incluindo mostra de filmes, debates, palestras e depoimentos. A iniciativa partiu de um grupo de alunos do Centro Acadêmico de Filosofia da USP, que se juntaram a outros estudantes da ECA, integrantes do Grupo de Cinema de São Paulo, e viabilizaram a maior discussão já feita sobre Paulo Emilio com o apoio de Carlos Augusto Calil, responsável pela curadoria, e de Maria Dora Mourão, diretora do Cinusp.
Como Paulo Emilio, antes de crítico de cinema, foi um intelectual em sentido mais amplo, deixando inclusive uma obra de ficção, "Três Mulheres de Três PPPês", o evento tentou capturar numa espécie de mosaico as várias facetas do homenageado.
A primeira tarefa foi eleger como epígrafe e mote do evento uma passagem de Paulo Emilio sobre o cinema brasileiro que se aplica ao próprio autor: "Quando se comemora os 80 anos de alguém ou alguma coisa, fica mais ou menos implícito que os 70, 60, e sobretudo os 50 com sua notável carga mediosecular, foram devidamente festejados. Há pouco disso no cinema brasileiro".
Prosa literária
Falando sobre o escritor Paulo Emilio num dos debates do evento, o crítico literário Modesto Carone diz que o primeiro traço a ser destacado nele e em seus companheiros da revista "Clima", fundada na década de 40, "é a criação em seus ensaios de um novo tipo de linguagem, moderna e maleável, ao mesmo tempo exigente e rigorosa, que assimila o ímpeto polêmico do modernismo".
No caso específico de Paulo Emilio, diz Carone, essa linguagem adquire em muitos momentos força e energia literárias, ou seja, há prosa de escritor na obra do ensaísta.
Um exemplo disso, segundo o crítico, está num texto em que Paulo Emilio protesta contra o Estado, que por razões de burocracia interna não liberara uma verba já aprovada para a Cinemateca.
Eis o trecho: "Quando nosso desejo de ação e construção encontra barreiras ao mesmo tempo absurdas, injustas e intransponíveis, quando atingimos o limite em que habitualmente se perde a cabeça, nós a fazemos funcionar, racionalizando a situação. E se perdemos a parada, resta-nos o consolo um pouco ridículo de termos em relação às forças que nos venceram uma lucidez que elas próprias não têm quanto a nós ou a si próprias".
Essa passagem, diz Carone, tem "dicção kafkiana e poderia perfeitamente fazer parte de uma reflexão desconsolada de Joseph K. no final do 'Processo'±".
A mesma capacidade de narrar foi objeto da análise de Ismail Xavier, professor da ECA, quando falou sobre o "Método Crítico de Paulo Emilio". Ele não se sentiria à vontade com a palavra "método", diz Ismail, já que a crítica para ele era "sobretudo um corpo a corpo, um exercício não só de argumentação, mas de sensibilidade".
Há, segundo Ismail, "uma permanência do artesanato mesmo nos trabalhos de maior fôlego de Paulo Emilio, como o livro sobre Humberto Mauro. Ele é sobretudo um narrador, refaz através da narrativa o movimento de constituição do objeto, mimetiza os dados fundamentais da obra". Essa "dramaturgia interna" da obra perseguida por Paulo Emilio, afirma Ismail, está em franca oposição com a tônica da crítica mais recente, que "tem cabeça de montador, gosta de decupar o objeto".
O corpo a corpo com objeto, que pode ser traduzido em apego pelo concreto, contra a abstração vazia, também é ressaltado por Carlos Augusto Calil. Diz ele que "Paulo Emilio estimulava em torno de si um permanente questionamento, mas tinha aversão a abstrações. Esse gosto pela realidade, responsável inclusive pela sua aproximação com o cinema, essa queda pelo concreto, esse vício pelo palpável, correspondiam à necessidade de disciplina interior, e serviam de contrapeso a uma tendência natural para a fantasia, que nele se instalara desde criança".

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