São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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O paradigma implícito do novo Estado

LOURDES SOLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre os vários ajustamentos a que os países latino-americanos se viram obrigados a partir da década de 1980, um dos mais lentos e mais difíceis tem sido a reformulação dos mapas cognitivos por meio dos quais eram analisadas as perspectivas de mudança para suas economias e sociedades. Este é um problema típico, mas não exclusivo, da América Latina.
As interpretações rivais previamente existentes sobre as relações entre Estado e mercado, sobre as modalidades de gestão das crises econômicas, sobre as relações entre economia e política no capitalismo, em particular no capitalismo heterogêneo que caracteriza os países da região, têm sofrido sucessivos choques de realidade -a uma velocidade que parece tornar cada vez mais retardatários os esforços para domesticá-los também no plano conceitual. Entre nós, o impacto desses choques tende a ser mais desestruturante e, por isso, mais ameaçador.
O déficit analítico (e programático) é comparativamente maior quando se trata de interpretar a economia política da região e, em particular, a do Brasil. Por três ordens de razões. Em primeiro lugar, porque a formação das políticas públicas se desenvolve em situações caracterizadas por níveis de incerteza política e econômica extraordinariamente altos. Pois, como se sabe, os parâmetros do jogo político-econômico são muito menos estáveis do que nos países capitalistas avançados.
Os processos de democratização, de transformação do regime econômico centrado no Estado, o esgotamento da ordem social regulada que, por si sós, apontam para novos parâmetros, estão ocorrendo na ausência de qualquer compromisso de classe (keynesiano ou não). A incerteza que caracteriza o contexto em que se formam as políticas governamentais é, além de extrema, multidimensional.
Em segundo lugar, a ausência de um pacto social sobre a distribuição dos recursos materiais, das penalidades e privilégios associados às estratégias de transformação econômica reflete-se também nas modalidades e no escopo dos conflitos. Estes não se limitam apenas ao conteúdo das políticas econômicas, mas envolvem uma luta bem mais profunda e multidimensional sobre os procedimentos, os mecanismos, o estilo das decisões governamentais e, em especial, sobre o teor das relações Estado-sociedade. Daí a politização de muitas das questões de política econômica que, em contextos mais estáveis, têm sido confrontadas em termos predominantemente técnicos e/ou por meio de soluções institucionalizadas e, portanto, rotineiras.
A terceira razão abre espaço para otimismo. Nos últimos 15 anos, a América Latina vem se constituindo em um dos mais ricos laboratórios de experimentação de política econômica, com resultados bastante diversos -algumas vezes abonadores para a fração das elites governamentais habilitada a formular e a implementar estratégias que, em termos comparativos, são sempre de alto risco. Daí decorre a constante ampliação do enorme hiato entre a riqueza e a diversidade do saber já acumulado, de um lado, e, de outro, a capacidade de elaborá-lo em termos conceituais suficientemente rigorosos e, sobretudo, abrangentes.
Os termos do debate ideológico na América Latina, sobre questões tais como "o que somos?", "para onde vamos?", se ressentem dessas carências e vêm se alterando com uma rapidez inusitada e, por vezes, desconcertante. Questões desse tipo têm um forte componente doutrinário (além de técnico) que é inarredável, pois se reporta ao perfil da sociedade e da ordem econômica e política que se quer. Enfrentá-las adequadamente envolve capacidade de pensar em termos estratégicos; o que, por sua vez, tem por condição material a liberação da ditadura do curto prazo em que nos vimos submetidos pelas experiências extremas da crise da dívida externa e da hiperinflação.
Ora, esta condição está em vias de ser satisfeita por quase todos os países do continente. Esse foi um dos efeitos benignos do processo pelo qual a estabilidade econômica se converteu em um bem público -democraticamente distribuído; dos poucos aos quais têm acesso as populações da região mais indefesas diante da virulência do processo inflacionário. A bem da justiça, cabe perguntar: mas não foi esse, desde sempre, um dos argumentos políticos tanto do liberalismo quanto do neoliberalismo econômico, em defesa de suas bandeiras, ou seja, a estabilidade de preços, a disciplina fiscal, um "modicum" de equilíbrio nas contas externas?
E, o que é mais perturbador, não foi essa também a bandeira do setor mais ortodoxo das direitas latino-americanas, tradicionalmente antipopulistas? Sobretudo em países, como o Brasil e a Argentina, onde o populismo (na acepção credenciada pela ciência política) representou uma via privilegiada de incorporação das massas ao processo político? E não tem sido essa, também, hoje, uma das principais fontes de legitimação de governos autoritários que se querem populares, como o de Fujimori?
Além disso, para complicar o cenário intelectual, o recurso ao conceito de "populismo econômico", cunhado pelos economistas do Norte, leva a confundir ainda mais os termos da discussão. Usado nos últimos anos como equivalente de um distributivismo exacerbado, de indisciplina fiscal e monetária incompatíveis com a "boa gestão da economia", conserva um forte teor normativo que o aproxima (perigosamente) da vulgata neoliberal.
Outro exemplo desconcertante vem de fora. O receituário das instituições internacionais de financiamento condensado no "Consenso de Washington" está longe de ser estático -como também não o são as condicionalidades que procuram impor aos países endividados. Ambos foram profundamente abalados nos anos de 1990, graças aos choques de realidade administrados pelos experimentos de reforma econômica no Leste Europeu (entre outros).
Primeiro, porque às reformas liberalizantes não se seguiu, automaticamente, a retomada do crescimento, como previsto. Ao contrário, segundo dois estudiosos da região: "Ninguém previa que o declínio na produção seria mais longo e mais profundo do que nos anos da Grande Depressão"... "e tampouco o cansaço do eleitorado depois de anos de reforma".
Segundo, como consequência, os novos governos eleitos depois desses experimentos, na Polônia e na Hungria, "prometem manter seus navios no rumo neoliberal -mas com bandeiras socialistas em suas velas" (1). Isso explica a mudança de perspectiva que leva os técnicos daquelas instituições a corrigir suas prescrições e o conteúdo das suas condicionalidades políticas em uma direção inesperada.
Invocando a experiência do Leste Asiático -onde reformas liberalizantes bem-sucedidas foram iniciadas por Estados bem estruturados, maduros e autoritários- "transitam de Pequim a Varsóvia, prescrevendo Estados fortes" como condição necessária para a liberalização das economias pós-comunistas. Como explicar a aparente incoerência desse trânsito intelectual do neoliberalisimo ao neo-estatismo? Afinal, onde estamos?
O último livro de Bresser Pereira realiza a promessa que ostenta no subtítulo, "uma nova interpretação da América Latina", a partir das experiências dos três grandes países da região, Argentina, México e Brasil. A abrangência e o rigor da análise que faz da crise dos anos de 1980, "uma crise de Estado", o credencia como um texto de economia política rigoroso, coerente e deliberadamente polêmico.
Por meio de uma argumentação cerrada, explora as interpretações correntes sobre a natureza da crise econômica, as "correspondentes estratégias de desenvolvimento, as respectivas coalizões de classe ou pactos políticos". A elas contrapõe a sua própria interpretação da crise, cujas características distintivas permitem situá-la como um ponto de convergência entre a vertente neo-estruturalista no plano da análise econômica e social-democrata no plano programático.
É essa combinação que lhe permite tomar distância dos diagnósticos da direita neoliberal e do que qualifica o da "esquerda arcaica", para elaborar seu conceito de "crise de Estado", em um esforço "por sintetizar o velho paradigma, que reservava um papel decisivo para o Estado, e o paradigma neoliberal".
A característica distintiva está em uma abordagem que não é neutra do ponto de vista analítico e tampouco indiferente do ponto de vista programático, a partir de três aspectos da crise de Estado. Primeiro: a crise fiscal remete à análise das decisões domésticas e internacionais que vinculam a perda do crédito público e da credibilidade do Estado aos choques externos, sobretudo ao de 1982 e às formas de ajustamento externo e interno que induziram. Vinculam, em decorrência, a solução da crise a formas específicas de renegociação da dívida externa.
O tratamento desse aspecto marca a diferença com o diagnóstico neoliberal em sua versão mais pragmática, a do Consenso de Washington. Uma versão que passa ao largo dos choques externos como uma das causas básicas da crise e da dinâmica macroeconômica perversa que teve por desfecho a mudança de regime inflacionário e portanto altas taxas de inflação, recessão etc.
É desse tipo de análise que Bresser Pereira parte para elaborar sua crítica às terapias baseadas -prioritariamente- na recuperação da confiança dos credores externos adotada pelo México e para fundamentar sua estratégia de renegociação da dívida externa, enquanto ministro da Economia. Um dos pontos altos do livro é a reconstrução dessa experiência, na "Parte Dois" do livro.
O segundo aspecto remete à crise do modo de intervenção do Estado na economia e na sociedade, que decorre da exaustão das formas protecionistas de industrialização, do excesso de regulação, das práticas de "rent-seeking" a que deu lugar. É isso que explicaria mudanças inesperadas nas agendas governamentais, tornando ineludível a necessidade de reformas orientadas para o mercado, como liberalização comercial, privatizações, desregulamentação. Terceira: a crise da forma burocrática de administração, "pela rigidez e ineficiência do setor público".
É a partir dessa caracterização que Bresser Pereira defende uma estratégia orientada para o mercado, mas coordenada pelo Estado, que seria, "pragmática e social-democrática -ou talvez, mais precisamente, social-liberal- e não uma estratégia neoliberal" (pág.13).
Em que consiste a diferença? Em seus objetivos, em primeiro lugar, porque se trata de uma crise que abre espaço para reformas que visam à reconstrução do Estado em bases novas (e não a instauração de um Estado mínimo), ou seja, de modo a dar prioridade a suas responsabilidades na área social. É liberal porque as reformas orientadas para o mercado têm por meta também garantir a competitividade interna e externa. E, finalmente, se apóia em "novo tipo de nacionalismo", isto é, de uma concepção de interesse nacional, definido caso a caso.
O livro de Bresser Pereira tem dois grandes méritos adicionais. É estruturante, porque restabelece o significado progressista de políticas macroeconômicas coerentes, que visam a aumentar a taxa de poupança da economia e portanto de crescimento, por meio de uma estratégia de reformas que define como social-democracia. Ao fazê-lo, obriga-se a dar conta das premissas em que se apóiam o neoliberalismo, o liberalismo, o neo-estruturalismo . É um livro que modifica o leitor e, por isso, obriga a uma mudança nos termos da discussão.
Outro mérito tem a ver com a reconstrução que faz dos experimentos de estabilização dos anos de 1980 até o Plano Real, de renegociação da dívida e com a capacidade que revela ao discriminar com rigor os avanços efetivos e os desacertos do governo Collor, a partir do marco conceitual que propõe em seu livro. Ao fazê-lo contribui para reduzir significativamente o hiato entre o saber já acumulado sobre a formação das políticas públicas em tempos de anormalidade e a capacidade de elaboração que tanta falta faz para futuras decisões estratégicas.

NOTA: 1. Bruszt, Laszlo e Stark, David, "Re-estructuring Networks in the Transformation of Postsocialist Economies" (mimeo), 1994.

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