São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Os múltiplos sentidos inesperados

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A pequena editora Sette Letras, do Rio de Janeiro, lançou, talvez, as duas mais significativas coletâneas de poemas deste ano, cronologicamente: "Feixe de Lontras", estréia de Angela de Campos, e "Sob a Noite Física", terceiro livro de Carlito Azevedo.
A poesia de Angela traz a marca forte da imagem cortante, a se confrontar com o cotidiano: "O espaço de um momento /em que cato o anjo coxo /vibrando no vôo /do fósforo decapitado". Ou: "O verde que cai /ensimesma árvores /ao longo do rio da rua /retalhada de cores -buzinas". Angela percebe que, apesar de "verdes", árvores, ao longo do rio da rua, estão deslocadas, ensimesmadas. Para as cores da paisagem urbana, reserva o verbo "retalhar", estancado em "buzinas" -fragmentos, que também podem estar se referindo ao próprio observador. É neste compasso de des/ritmia que Angela vai construindo suas linhas, que vão, palavra a palavra, se contradizendo: "Hora tensa de hortênsia - /nada condensa a dor -/ a cadência deságua no canto /do quarto crescente".
Há autores em comum a estimular Angela e Carlito: Carlos Drummond de Andrade e Sebastião Uchoa Leite (um dos maiores poetas brasileiros vivos). A perda, drummondiana, do bonde e da esperança, reaparece em Angela, sexualizada: "Volto para casa /teta do tempo derramado /vento idéias sem telhado, /alvéolo que produz torpor. /Engomo tangerinas no céu". Angela capta de modo exato um estado de desconexão das coisas, um desencontro entre poeta e "mundo real".
Sebastião Uchoa Leite está presente na poesia de Carlito Azevedo no gosto pelas pequenas narrativas do cotidiano, que funcionam como uma espécie de "realidade" para o poema, que se permite, quase sempre, vôos oníricos e bem-sucedidos pelo universo da linguagem: "No museu vidro e acrílico /protegem a máscara katchina hopi /no depósito de lixo meninos brincam /com a máscara contra gases da 1º Guerra". A produção do sentido e do sentido inesperado se dá, basicamente, em Carlito por meio da técnica de cortes incisivos da frase longa, de tom culto, e pela utilização de certas palavras, articuladas numa linha aparentemente banal, inexpressiva: "É que tudo, se passa, vira nada? /mesmo que se anele ainda a alugada /e sexy roupa fátua do poema...". A palavra, neste autor, busca, além das imagens, um diálogo com o universo das artes plásticas (Vieira da Silva, Francisco Faria e outros). Há poemas brilhantes, como "Coppélia", que trabalha rivalidades entre cotidiano e arte: "Cai o pano /(cai silêncio /no piano) /Cai o piano /(onde estamos?) /cotidiano". O poema se conclui, drummondianamente: "E caímos nós /voltando /para o plano /tão demasiado humano". As peças curtas talvez sejam, de meu ponto de vista, as mais bem realizadas, como a aquela que sugere um título, inventado pelo poeta, para um suposto quadro de Max Ernst: "No latão de lixo da esquina /as vísceras explodidas /de uma gravata". Síntese expressando, aqui, toda uma situação de certo modo de vida, atual e urbano -burocrático e funcional.
Carlito consegue reunir poemas acima da média -o que coloca, ao lado de Josely Vianna Baptista, como o mais consistente nome da geração que se lançou nos anos 90 e que está aí na casa dos 35 anos. Uma certa fixação por metros fixos -de alguma modo obsoletos- nele se explica não como virtuosismo vazio, mas, ao contrário, como registro, paródico, do caos, da existência de obstáculos a uma nova ordem: "Quer ir além do corpo? /lá onde aéreas pétalas /de nada e de torpor? /O olhar pára, decifra, /oculto entre vermelhos, /um perfume em Saxífraga". Peças tais como "O Dia O Que Traz Consigo?" demonstram esta afirmação: "Manhã asselvajada /Jardim utópico / Narciso errático". Entre os poemas amorosos, que retrabalham versos de Drummond, destacaria "Noite": "O corpo formiga /de noite, de ausência, ferido por frios /punhais de dormência...". "De uma Foto", com as linhas finais "apenas sono /o corpo quer dormir" retoma o poema "Na Noite Física", que dá título ao livro. Em "Na Noite Física", métrica de sete sílabas a emprestar um tom de canção, o poeta retrata a ausência da parceira amorosa (tema maltratado pela poesia brasileira atual), com violentas e surpreendentes imagens: "A luz do quarto apagada, /na escuridão se destaca /a insônia que nos atraca, /dois gêmeos na bolsa d'água". "A insônia que nos atraca" se interroga no rasgante "Ao despertar levo as marcas /que de noite rabiscavas /em minha pele com a sarna ávida de tua raiva?". As "variações cabralinhas", "os temas e as voltas" e a reescritura do poema "Na Noite Gris", publicado no anterior "As Banhistas" (1993), são indícios, pistas, de que "Sob a Noite Física" pode ser também reafirmação de caminhos, mais do que início de novos -encerrando, quem sabe, para ele, um ciclo.

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