São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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A síndrome natalina de presentear

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como de hábito nesta época do ano, é impossível não pensar em presentes. Não sei quantos leitores compartilharão minhas reações pessoais a esse momento -ambivalentes, se não contraditórias. Trata-se de um sentimento de irritação, possivelmente reforçado pela culpa de ainda não ter pensado sobre como presentear os conhecidos, tudo isso explodindo à visão das primeiras decorações de Natal nas ruas.
"Eles" começaram ainda mais cedo com essa história de Natal! "Eles", obviamente, são os lojistas ou, em tom mais teórico, o sistema capitalista, mercantilizando o que antes fora um festival popular. Do ponto de vista dos lojistas, toda essa propaganda em prol de presentes natalinos é certamente uma decisão acertada, um modo de maximizar seus lucros. Do ponto de vista do resto de nós, é algo de inteiramente irracional. Muitas vezes gastamos uma boa quantia de dinheiro em presentes para amigos e parentes, objetos que eles mesmos jamais teriam comprado, mas que, consumado o fato, devem fingir apreciar no momento em que os recebem.
Em troca, nós ganhamos coisas que não queremos, camisas que não servem, gravatas de cores abomináveis, o perfume errado, garrafas de whisky etc. etc. -e também nós temos que fingir que eram exatamente o que queríamos. Fica difícil evitar a questão: presentes são de fato necessários?
A essa altura, não posso deixar de pensar nos argumentos de um livro famoso, publicado em 1922 pelo antropólogo anglo-polonês Bronislaw Malinowski sob o título de "Argonautas do Pacífico Ocidental". Essa obra-prima da etnografia descreve o modo de vida dos habitantes das ilhas Trobriand, próximas à Nova Guiné. A instituição central descrita no livro é o Kula. O Kula era (e ainda é) uma forma de troca praticada entre os habitantes (ou pelo menos entre os homens) de um círculo de ilhas.
Dois tipos de objetos são trocados: colares de conchas vermelhas e braceletes de conchas brancas. Os colares circulam em sentido horário, enquanto que os braceletes o fazem no sentido inverso. Ninguém conserva qualquer um desses objetos por muito tempo, pois braceletes são trocados por colares e vice-versa. Gasta-se um bom tempo nessas trocas, mas ninguém sai com grandes ganhos ao final de mais um ano.
Ainda assim, segundo Malinowski, as transações Kula estão longe de serem inúteis. Do ponto de vista dos participantes, elas não são uma troca no sentido econômico do termo, mas sim trocas de presentes. Há regras culturais sobre quem presenteia quem com tal ou qual tipo de coisa, bem como regras sobre o lapso de tempo até a próxima retribuição (seria ofensivo retribuir cedo demais ou tarde demais, assim como seria uma gafe oferecer um bracelete muito melhor ou muito pior do que o colar que se recebeu).
Os objetos são transportados com cuidado e entregues de maneira ritualizada. Essas transações regulares formam o centro de um bom número de atividades sociais, que incluem festejos e troca de notícias. À primeira vista, as regras, os rituais e a confraternização podem parecer meros acréscimos supérfluos. Entretanto pode valer a pena virar o argumento do avesso e imaginar se a troca de presentes não é um pretexto para os festejos, as conversas e a preservação das relações sociais.
É óbvio que as análises de Malinowski são relevantes para várias partes da Terra além das ilhas Trobriand -foi o que Marcel Mauss mostrou um ou dois anos depois em seu famoso "Essai Sur le Don" (1923-24), um estudo comparativo que vai da Antiguidade clássica à Escandinávia medieval, passando pelos indígenas da América do Norte. De acordo com Mauss, os presentes podem ser vistos como o óleo que lubrifica o mecanismo das relações sociais. Por esta razão, em certas culturas seria um erro querer retribuir alguém por um presente recebido, já que isso indicaria um desejo de pôr fim à relação (o que tornaria absurdos nossos presentes de Natal). Na Irlanda dos tempos em que se vendia fiado, um comerciante sentia-se insultado quando um cliente quitava a totalidade de suas contas. Deixar uma pequena soma "pendurada" era um modo de conservar a relação entre ambos.
É claro também que algumas culturas levam os presentes mais a sério que outras. Os japoneses, por exemplo, preocupam-se bastante com isso: suas lojas estão cheias de artigos -comida, flores, roupas e assim por diante- em embalagens vistosas, cada qual apropriado a uma certa ocasião social. Sempre que um professor japonês vem me visitar, sei de antemão que ele trará um presente -um livro, um quadro, uma calculadora-, deixando-me sempre em confusão sobre quando, como e com o que tipo de coisa ou serviço retribuir.
No Japão, a propósito, a embalagem pode ser mais cara que o presente. Talvez também esse costume tenha um sentido social. Talvez simbolize a consciência de que o ato de dar e a relação social que ele cria ou conserva são mais importantes do que o presente em si mesmo -este logo será comido, secará ou quebrará. Ou talvez os japoneses estejam silenciosamente dizendo uns aos outros que, na vida social, o que realmente importa são as aparências e as embalagens, sem que haja qualquer coisa de importante lá dentro.
Alguns economistas afirmam que, ao menos no mundo civilizado, o mercado é uma força dominante que pôs definitivamente de lado os sistemas de troca das sociedades mais tradicionais. O exemplo do Japão, tal como o exemplo do nosso Natal, sugere precisamente a conclusão oposta: talvez os dois sistemas coexistam. Em outras palavras, todos nós nos envolvemos em transações Kula. Os pregadores religiosos estão sempre a denunciar a mercantilização do Natal, mas talvez não percebam que dar e receber presentes são atos eminentemente simbólicos.
Como nas ilhas Trobriand, a troca deixa todos mais ou menos na mesma situação econômica, mas ao mesmo tempo reforça as relações sociais. É por isso que, uma vez cumprido meu ritual anual de queixumes contra a cultura do capitalismo, também eu estarei me preparando para comprar mais uma rodada de presentes, na esperança de que ninguém ache que eu ando precisando de um belo pijama vermelho-rutilante.

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