São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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A morte de um enfermo curado

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Após 20 anos de ajustes, após o triunfo completo -não apenas na América Latina, mas em todo o mundo- dos princípios redigidos pelo senhor Williamson no consenso de Washington, vale dizer, da primazia absoluta conferida à política macroeconômica de exoneração do Estado da vida econômica e do equilíbrio orçamentário, chegou o momento em que a intervenção antes necessária arrisca paralisar o enfermo e este se vê sujeito a morrer curado.
Isso se aplica sobretudo à Europa ocidental, onde o crescimento é quase nulo e o desemprego aumenta; isso já se aplicava havia muitos anos à Europa pós-comunista, onde as reformas liberais, inauguradas pela Polônia de Balcerowicz a 1º de janeiro de 1990, acarretaram consequências sociais tão dramáticas a ponto de reinstalarem os comunistas no poder; isso passou a aplicar-se à América Latina a partir da crise mexicana, que teria forçado todo um continente à derrocada, não fosse a intervenção do Tesouro americano e do FMI.
Hoje é a Argentina que está na situação mais grave: após quatro anos de recuperação e de forte crescimento devido ao Plano Cavallo, ela deixou de avançar economicamente, o desemprego subiu drasticamente de patamar e uma crise política permanente foi aberta pela demissão de Cavallo e o descontentamento popular, o que permitiu ao partido radical obter o governo da cidade de Buenos Aires.
O Brasil vive ainda sob os efeitos bastante positivos do Plano Real, mas não vemos se esboçar claramente uma nova política, e a eleição municipal de São Paulo foi uma séria advertência para o partido do presidente. A Colômbia, enfim, para citar apenas o país de maior crescimento a longo termo, está paralisada pela violência, pela corrupção, pelo narcotráfico.
Antes mesmo de tentar uma explicação deste cenário e de buscar-lhe os remédios, há que se definir nitidamente a situação atual. A eficácia positiva das indispensáveis reformas liberais está esgotada. Seus efeitos negativos, sobretudo os sociais e políticos, são cada vez mais evidentes. Os que duvidarem de meu diagnóstico escutem ao menos os responsáveis pelas principais instituições financeiras globais, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, tomados por muitos como os defensores mais ferrenhos de um neoliberalismo brutal. Eles sustentam, na verdade, um discurso bem diverso. Ainda há pouco, um jornal uruguaio, ao noticiar a criação do Círculo de Montevidéu, assim lhe resumia a sessão final: Felipe González defende a economia de mercado e o senhor Camdessus (diretor geral do FMI) insiste na defesa da identidade cultural de cada país e no necessário respaldo do Estado. O que pode parecer um chiste nos põe em verdade no caminho da explicação.
O senhor Camdessus, a exemplo do senhor Wolfensohn, presidente de um Banco Mundial que despende mais da metade de seu orçamento com intervenções sociais, e não econômicas, avalia a extensão da catástrofe mexicana e o aumento da pobreza, das iniquidades sociais e da violência. Nos quatro cantos do mundo as sociedades se diluem, as personalidades individuais se decompõem, as instituições como a escola ou a cidade são invadidas pela violência e o Estado de direito sente-se encurralado.
Nos Estados Unidos, tais fenômenos ganharam proporções alarmantes, muito embora sejam contrabalançados pelo forte dinamismo econômico, escudado na predominância do mercado interno e na criação de inúmeros empregos qualificados, ligados à inovação tecnológica. Ademais, os norte-americanos são sustentados por sua consciência de detentores da hegemonia mundial.
No restante do mundo, inclusive no Reino Unido, a solução liberal parece absolutamente incapaz de resolver os problemas que ela, ao contrário, contribuiu a agravar. Por toda parte sente-se a necessidade de recriar um controle político e social da economia. Nos novos países industriais, isso acarreta o triunfo de nacionalismos culturais associados ao liberalismo econômico. Da Malásia e da Indonésia ao Marrocos e à Tunísia, inúmeros são os países que seguem esta via; no Brasil, a política de Maluf pode prender-se a tal corrente, ao passo que, no Peru, Fujimori não é nacionalista -pelo menos desde sua reeleição- e contenta-se em preservar um austero controle político, no qual intervêm governo, Exército e narcotráfico, sobre um país varrido por ataques do Sendero Luminoso e pelo malogro econômico (primeiro do governo militar e, mais tarde, de Alan García).
Diante dessa política, que comporta sempre um elemento autoritário, haveria outra solução, que poderíamos denominar meramente uma política de impulso econômico? É aqui que percebemos a natureza das dificuldades com que se defrontam os países de modelo ocidental. Pois o principal obstáculo ao impulso é o fato de ele arriscar ser utilizado em proveito não das categorias excluídas ou marginalizadas, mas de classes médias vinculadas ao Estado intervencionista e corporativo, que padecem de severos ataques, embora disponham de uma grande capacidade de defesa e de influência política.
Tomemos o exemplo da França. Não há dúvida de que o impulso econômico é necessário e possível, pois a parcela referente aos salários no PIB deste país diminuiu, ao passo que a taxa de autofinanciamento das empresas já excede os 100% (hoje por volta de 130%), a ponto de os lucros serem investidos em operações financeiras internacionais, e não no investimento produtivo. Por que o governo não estimula o impulso para além da baixa das taxas de juros que não tem efeitos diretos sobre os consumidores? Antes de tudo, porque há mais de um ano é o setor público que lhe move o ataque, ou seja, de maneira paradoxal é o setor mais protegido contra o desemprego, mas também o que a justo título sente que seus direitos adquiridos, legítimos ou não, são os mais implacavelmente ameaçados.
É também nessas categorias que, no Brasil, concentra-se a hostilidade ao governo. Do mesmo modo, este país, como a Argentina, teme a volta das pressões inflacionárias caso abandone uma taxa de câmbio fixa que não é realista (argumento hoje esquecido na Europa e em especial na França, onde nos últimos meses foi debatido se o país entrara ou não em deflação).
Como escapar a esse dilema: ou persistimos em uma política macroeconômica de ajuste e a sociedade debilita-se, decompõe-se e revolta-se, ou retomamos uma política monetária mais laxista ou mais protecionista, utilizada pelos grupos de pressão mais fortes -os mesmos que mais resistem à indispensável abertura internacional da economia. Muitos países, incapazes de sair deste dilema, quedam tão imóveis quanto o asno de Buridan. É preciso, naturalmente, que os dirigentes políticos tomem a iniciativa. Na Europa, reaquecendo a demanda, recriando a confiança e fomentando ações de inovação tecnológica; na América Latina, sobretudo afirmando sem vacilar a autoridade estatal contra todas as invectivas ao Estado de direito e especialmente contra a violência, tanto na cidade quanto no campo, e impondo-se como objetivo básico a diminuição das iniquidades sociais. Parece, deste prisma, que o próprio Chile toma consciência da necessidade de mudar a política. Sua aliança com o Mercosul forçará uma profunda revisão de sua política, demasiado favorável ao capitalismo financeiro e que deu rédea solta às desigualdades sociais.
Certo é que, por toda parte, ingressamos num novo período, a que poderíamos dar o nome sugerido por Gert Rosenthal, secretário executivo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina): um neo-estruturalismo pragmático. Há que se falar de um retorno a Prebisch?

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