São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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'Rainha dos bandidos' acha que não errou

JACINTO ANTON
DO "EL PAÍS", EM BARCELONA

Baixinha, seu corpo gorducho envolto em um sári cor de mel e as mãos pequenas unidas numa tradicional saudação indiana, Phoolan Devi não parece absolutamente a terrível "rainha dos bandidos" que era no passado, com bandoleiras cruzadas sobre o peito e ar feroz.
Apenas seu olhar, de olhos inquietos que mudam constantemente de foco, como se ainda se sentisse perseguida, revela algo do passado dessa mulher, que tem uma história de sofrimento atroz, vingança e redenção.
Nascida há cerca de 35 anos no seio da casta dos mallahs, somente um degrau acima dos párias, na pequena aldeia camponesa de Samokan (norte do país, Estado de Uttar Pradesh), Phoolan Devi (Deusa das Flores) foi casada aos 11 anos de idade e violada selvagemente por seu marido, 25 anos mais velho.
Não foi a primeira grande dor que teve de suportar. Antes, tinha sido mordida por uma hiena, o que não deve ter-lhe parecido muito diferente.
Na verdade, foi apenas o início de uma série de abusos inenarráveis que a fizeram converter-se, aos 16 anos, em uma dacoit, ou bandida, e, depois de uma vingança melodramática, em uma personagem lendária em um país rico em lendas.
Hoje, depois de entregar-se à Justiça e passar 11 anos na prisão, Phoolan é deputada no Parlamento indiano. Ela esteve na semana passada em Barcelona para o lançamento de sua autobiografia, "A Rainha dos Bandidos".
'Justiça'
"Não me arrependo de nada do que fiz", disse, enquanto suas mãozinhas, que no passado apontavam uma Mauser e uma submetralhadora Sten, desenhavam grades no ar com a graça de uma bailarina de kathakali.
"Não fiz mais do que dar o que mereciam as pessoas que abusaram de mim", acrescentou Phoolan. A "rainha dos bandidos" castrou alguns dos homens que a violentaram, entre os quais seu primeiro marido, e liquidou outros a tiros, como explica em sua autobiografia.
Massacre
Em 14 de fevereiro de 1981, a "rainha dos bandidos" e seu bando entraram na aldeia de Behmai e realizaram uma matança, eliminando 22 homens.
Causa calafrios pensar que essa mulher chegou a ser considerada uma reencarnação da obscura Kali-Durga, a temível divindade que em sua época dirigia os passos de outros célebres saqueadores de estrada indianos, os thugs estranguladores.
"Só ataquei os que exploravam os pobres e restituí a estes o que lhes havia sido roubado", resume Devi.
A Robin Hood da Índia, acompanhada no lançamento do livro por seu atual marido, um homem com bigodes grandes e um olhar terno, assegura que hoje em dia é uma mulher feliz.
Com voz cristalina -em urdu, e tradução simultânea de um intérprete britânico-, Phoolan criticou os livros escritos sobre ela até agora. Ela afirma que apenas o seu livro contém a verdade, a história real. "A Rainha dos Bandidos" foi ditado por ela a um secretário, pois ela continua analfabeta.
Paradoxalmente, ela acredita que durante seu governo não houve grande progresso quanto aos direitos da mulher.
Elogiou, porém, madre Teresa de Calcutá. "É uma mulher boa e respeitável. Mulheres como ela fazem falta na Índia."
Projetos
Um de seus principais projetos é a criação de uma instituição que acolha as mulheres que saem da prisão, rejeitadas pela sociedade e por suas famílias.
Outra preocupação é eliminar a tradição de dote matrimonial, que faz com que ter filhas acabe representando uma carga para as famílias na Índia.
Não tem opinião muito boa sobre os políticos de seu país.
Para ela, eles "não são boas pessoas, em geral. São egoístas, corruptos e estão preocupados somente com suas carreiras". Além disso, "não hesitam em promover e explorar a rivalidade existente entre as castas".
Mulheres
A ex-bandida, que se escandalizou com o tratamento que a publicidade dá à mulher ocidental, não se opõe, no entanto, aos concursos de beleza como o que foi recentemente realizado em seu país.
A realização do concurso de Miss Mundo, na cidade de Bangalore, gerou protestos de grupos feministas e religiosos, contra o tratamento dado a mulher e contra a ocidentalização dos costumes na Índia.
"Se a natureza foi generosa com uma mulher, e ela tira proveito disso, está bem. O mal é que a mulher seja explorada em benefício de outros."
Phoolan Devi diz que não acredita em reencarnação. Mas, em todo caso, afirmou esperar que, se tiver de voltar a nascer, que ao menos isso não aconteça na Índia, e não como mulher.

Tradução de Paulo Migliacci

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