São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Transição testará tolerância de Pequim

TAD SZULC
DO "INTERNATIONAL PRESS SYNDICATE"

Dentro de poucos meses esta vibrante cidade-região, onde "o grande é belo" e nada que importa é pequeno, vai se transformar no teste crucial da disposição e capacidade da República Popular da China em ingressar no novo mundo do século 21 dentro de um espírito democrático.
À meia-noite do dia 30 de junho de 1997, Hong Kong será entregue à China, após 155 anos de governo britânico, para se tornar uma "Região Administrativa Especial" (RAE) chinesa. Os célebres batalhões de gurcas, representantes do Exército britânico em Hong Kong, já estão deixando a cidade.
Inevitavelmente, a pergunta fundamental que se coloca é se Pequim deixará continuar crescendo mais ou menos livremente a democracia de Hong Kong ou se irá gradativamente impor controles repressivos autoritários de diversos tipos, que poderiam acabar com as liberdades civis, os direitos humanos e a democracia incipiente existentes em Hong Kong, além de reduzir sua importância enquanto centro financeiro internacional crucial.
A resposta ainda está envolta em dúvidas, mas o destino de Hong Kong está estreitamente ligado à evolução política chinesa global, que, neste momento, atravessa uma fase extremamente delicada, quando a China, em fase de "boom" econômico, com sua população de 1,2 bilhão de pessoas, se transforma no colosso econômico e militar da Ásia, com grandes chances de vir a tornar-se a próxima superpotência mundial, ao lado dos Estados Unidos.
Esse fato já está afetando as políticas com relação a Pequim -por exemplo, levando Washington a abrir mão de sua ênfase sobre o respeito aos direitos humanos, em prol do acesso garantido ao imenso mercado chinês.
Enquanto isso, o crescente poderio chinês e suas implicações para o futuro de Hong Kong e o resto da Ásia foram a realidade dominante nos três dias que durou a conferência do Fórum Econômico Mundial realizada em Hong Kong em outubro.
Empresários e porta-vozes econômicos oficiais da China (incluindo o presidente da Bolsa de Valores de Xangai), que dirigem empreendimentos lucrativos bilionários, vieram com mensagens tranquilizadoras acerca do futuro de Hong Kong.
Até mesmo os norte-coreanos participaram do evento supercapitalista, pela primeira vez, para pleitear investimentos privados em seu país desesperadoramente empobrecido.
Decisões
Os governantes de Pequim terão de tomar decisões políticas e econômicas fundamentais em relação a Hong Kong. Decisões estas que, em última análise, são inseparáveis e inevitavelmente irão definir de maneira significativa suas relações com o resto do mundo.
A decisão econômica -de longe a mais fácil de tomar- é se deixam essa cidade portuária continuar funcionando como principal capital financeira e comercial da Ásia.
O consenso geral na conferência era que a China terá tudo a ganhar e nada a perder, em termos econômicos, se deixar Hong Kong continuar como está, principalmente porque o território tem centenas de bilhões de dólares investidos nele, principalmente em imóveis de valor inestimável.
Outros incontáveis bilhões de dólares de dinheiro de Hong Kong e Taiwan estão investidos em empresas e indústrias localizadas na China continental, criando uma rede inextricável de propriedade e controle financeiro.
Hoje, o Banco da China, de Pequim, é provavelmente mais poderoso do que todos os bancos privados de Hong Kong juntos. Todos parecem ser parceiros ou associados de todos, atravessando a fronteira porosa que ainda divide os territórios de Hong Kong da China propriamente dita.
Hong Kong é um poderoso caldeirão de energia econômica. Sua renda anual per capita é de US$ 17,6 mil, cifra alta por qualquer padrão mundial, embora sua riqueza e opulência extraordinárias não sejam igualmente compartilhadas pelos 5.878.100 habitantes do território (cuja população se multiplicou por 15 neste século).
A maioria dos habitantes se concentra, numa densidade demográfica inacreditável, na ilha de Vitória (na baía de Hong Kong), nos distritos de Kowloon (no continente), interligados por um túnel moderno, e por frotas de juncos e sampanas, na água.
Subclasse
O território tem uma subclasse imensa que convive lado a lado com os ricos de Hong Kong e ao lado de alguns dos mais luxuosos hotéis do mundo (cujas diárias custam pelo menos US$ 400) e dos arranha-céus futurísticos repletos de escritórios que pontilham o horizonte às margens da baía de Victoria.
Apesar disso, continua atraindo multidões de imigrantes ilegais da região rural chinesa mais distante, onde o padrão de vida é pior do que o das favelas de Hong Kong.
Na verdade, as áreas continentais em torno de Hong Kong também estão enriquecendo (assim como as vizinhas "zonas econômicas especiais" criadas por Pequim há mais de dez anos), tendo se transformado em centros de uma pequena produção agrícola e industrial voltada ao abastecimento da cidade. Nesse sentido, as estatísticas sociais são relativas, e a nova realidade é que crescimento e riqueza se irradiam desde Hong Kong, onde o índice de desemprego é desprezível: apenas 2,1%.
Tendo lançado sua reforma econômica na China no início dos anos 80 e desencadeado o "boom" nacional, os dirigentes de Pequim seriam tolos se quisessem interferir com Hong Kong.
No verão de 1997, a China vai herdar em Hong Kong o maior porto de navios-contêineres do mundo (sendo que boa parte do comércio chinês passa pela cidade), um dos maiores aeroportos do mundo (em construção numa ilha artificial), além de mais de US$ 60 bilhões em reservas em divisas, uma infra-estrutura comercial e financeira impressionante e a Bolsa de Valores de desempenho mais alto no mundo.
Quanto maiores os novos arranha-céus e centros de convenções, túneis e elevados de arquitetura ousada, mais orgulhosos os habitantes de Hong Kong.
Diamantes e esmeraldas brilham nos dedos das mulheres da classe alta. Computadores e telefones celulares estão por toda parte. E a confiança atual de que Pequim vá agir de maneira racional na esfera econômica (e, com certeza, não interferir com os ricos) restaurou em muito a confiança dos empresários em Hong Kong, após os temores iniciais verificados no início da década de 80, quando o Reino Unido concordou em devolver o território à China.
Hoje, o capital local evadido retornou à cidade, ao lado de novos investimentos vindos de fontes externas.
Futuro político
Mas o otimismo é muito mais moderado quando o assunto é o futuro político de Hong Kong. Embora Pequim tenha se comprometido formalmente a manter as instituições hoje vigentes no território pelos próximos 50 anos, sob a divisa oficial de "um país, dois sistemas", o clima geral é de considerável cautela e incerteza.
Chris Patten, o governador britânico que vai devolver Hong Kong à China no dia 30 de junho, se inclui muito claramente entre aqueles que ainda não estão convencidos das boas intenções da China, a longo prazo.
Resumindo sua posição na conferência do fórum, Patten insistiu que "Hong Kong precisa de liberdade econômica e política", que o futuro "depende de a China estar disposta a confiar em Hong Kong" e que a transferência de soberania e manutenção do estado de direito constituem "um desafio único".
Dois passaportes
Mas as intenções chinesas nessa área não estão claras, e isso é preocupante. Não é segredo para ninguém que muitos cidadãos ricos de Hong Kong vêm obtendo passaportes britânicos ou estrangeiros adicionais para poder fugir em caso de emergência.
O novo ditado por aqui é que Hong Kong, sob o governo chinês, será "um país, dois passaportes". O temor dominante é que as liberdades que Hong Kong desfrutou sob o domínio britânico sejam perdidas aos poucos.
Muitas pessoas aqui simplesmente não acreditam que Pequim vá "confiar" politicamente em Hong Kong, mesmo sob o sistema altamente controlado, visando se fazer passar por democracia, que está sendo montado pela China.
Dada a rejeição categórica da liderança chinesa por qualquer forma de liberalização política, ao lado das novas reformas econômicas -e as recentes prisões de dissidentes chineses confirmam essa postura-, é difícil imaginar que qualquer tipo de "vírus democrático" possa ser tolerado em Hong Kong. O perigo de contágio da China continental seria considerado grande demais.
Assim, a impressão vigente é que a livre imprensa, o Judiciário e o funcionalismo público independentes correm grave perigo. Já começaram a surgir sinais de autocensura na imprensa de língua chinesa. Suspeitou-se que um expurgo esteja sendo preparado, quando Pequim recentemente solicitou a transferência imediata dos arquivos referentes aos funcionários públicos de Hong Kong.
O temor dominante é que mesmo as novas estruturas supostamente democráticas organizadas por Pequim irão desmoronar em pouco tempo. O território deverá ter o status inusitado de região administrativa "separada", mas os céticos se perguntam por quanto tempo ela realmente continuará sendo "separada".
Governador
O homem que vai governar Hong Kong após a partida dos britânicos é o armador milionário Tung Chee-hwa, 59.
Um "Legislativo provisório", igualmente escolhido a dedo, tomará o lugar do Conselho Legislativo eleito (há apenas cinco anos os britânicos passaram a permitir essa eleição).
Mas o poder real deverá ser exercido por um vice-ministro chinês residente de Relações Exteriores, por um general-de-divisão da guarnição do Exército de Libertação Popular que ficará estacionada em Hong Kong e pelo chefe do Partido Comunista de Hong Kong, que ainda não foi indicado (o partido ainda é ilegal em Hong Kong).
O fato de o executivo-chefe Tung ser aceitável para Pequim depois que Hong Kong passar a integrar a China não está em disputa, evidentemente. Mas, como observou o altamente respeitado secretário-chefe atual Anson Chan Fang On-sang, a grande pergunta é se, após a devolução de Hong Kong à China, Tung vai "defender os direitos de Hong Kong junto à República Popular da China".
Hong Kong vem se recusando a integrar o novo sistema. Quanto a Tung, ele prometeu, em discurso proferido no fórum, que "não haverá mudanças", acrescentando que, na visão de Pequim, o êxito em Hong Kong "vai facilitar a união chinesa com Taiwan" em algum momento futuro.
Direitos humanos
As violações dos direitos humanos em Hong Kong podem representar sérios problemas potenciais da administração Clinton com a China.
A lei Estados Unidos-Hong Kong, aprovada pelo Congresso em 1992, afirma que "os direitos humanos da população de Hong Kong são de grande importância para os Estados Unidos e são diretamente relevantes aos interesses dos Estados Unidos em Hong Kong" e que "uma transição plenamente aceitável no exercício da soberania sobre Hong Kong deve salvaguardar os direitos humanos... Os direitos humanos também constituem a base da contínua prosperidade econômica de Hong Kong".
Se o presidente Clinton determinar que "Hong Kong não é suficientemente autônoma" para desfrutar de qualquer forma de tratamento especial sob as leis norte-americanas -se, por exemplo, os direitos humanos forem violados-, a lei EUA-Hong Kong o autoriza a suspender tais leis. E isso, é claro, constituiria uma retaliação direta contra a China.
A lei de Hong Kong pode vir a mostrar-se especialmente relevante em um momento em que a administração Clinton parece haver abandonado sua política de pressionar a China sobre a questão dos direitos humanos -como deixou claro o secretário de Estado Warren Christopher, durante sua visita a Pequim em novembro-, presumivelmente em reconhecimento do crescente poderio chinês, incluindo o âmbito do comércio entre China e EUA.
As conversações de Clinton com o presidente chinês, Jiang Zemin, na conferência econômica de Manila pareceram confirmar essa mudança de ênfase política, juntamente com a decisão de vender tecnologia nuclear limitada a Pequim, destinada a fins pacíficos.
A possibilidade que mais assusta a população de Hong Kong é que a China possa fazer o que quiser no tocante aos direitos humanos e liberdades aqui porque já não acredita que as posturas humanitárias de Washington devam ser levadas a sério.
Se isso for verdade, a China terá provado, por meio do "teste" de Hong Kong, sua intenção de apenas integrar-se ao novo mundo com base em seus próprios e inflexíveis termos.

Tradução de Clara Allain

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