São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 1996
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A Academia Brasileira de Letras

MIGUEL REALE

A eleição de Nélida Piñon à presidência da Academia Brasileira de Letras foi recebida com gerais aplausos por significar o reconhecimento do papel da mulher na sociedade contemporânea, fato que, no dizer de Norberto Bobbio, constitui a maior revolução de nosso século. Não faltaram, todavia, referências irônicas e até mesmo maldosas, até o ponto de considerar a Casa de Machado de Assis anacrônica e sem significado na paisagem cultural de nosso tempo, o que é desculpável, pois a hipercrítica é um dos sintomas característicos do subdesenvolvimento.
Verdade é que a Academia Brasileira de Letras não tem se preocupado com a divulgação de suas atividades por entender que estas devem ser apreciadas de preferência pela produção de seus membros, entre os quais figuram os nossos maiores romancistas e poetas, desde Jorge Amado e Josué Montello a Cabral de Melo Neto, para citar apenas os mais antigos.
Vale a pena, porém, lembrar os nomes de Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon, para demonstrar que elegemos duas escritoras a mais do que a Academia Francesa, modelo no qual a nossa se inspirou, inclusive por abrigar, além dos cultores das letras, também figuras representativas de outros setores da cultura nacional. Mesmo nesses casos, no entanto, a Academia tem dado preferência a candidatos de inegáveis méritos literários, como se dá, por exemplo, com Carlos Chagas Filho, Ivo Pitanguy e d. Lucas Moreira Neves. É o que ocorre, outrossim, com o ex-ministro do Exército general Lyra Tavares, autor de livros fundamentais de nossa história militar.
É claro que, dada a natureza de seus escritos, bem poucos acadêmicos logram alcançar notoriedade, mas esta não pode ser elevada a critério essencial de aferição dos valores intelectuais.
Pode mesmo acontecer que, por seu natural recato, um acadêmico prefira a sua solidão criadora, como se deu com o saudoso Abgar Renault, recentemente falecido, considerado por Carlos Drummond de Andrade um dos maiores poetas brasileiros, com seu tão apurado classicismo em roupagens atuais.
Não procede, de modo algum, a assertiva de que a Academia Brasileira de Letras albergaria "ilustres desconhecidos", invocando-se, como exemplos, os nomes de Oscar Dias Corrêa, João de Scantimburgo, Sergio Corrêa da Costa e Alberto Venâncio Filho. Fácil é demonstrar a total improcedência desse precipitado juízo.
O primeiro, além de catedrático de economia de nada menos de três universidades oficiais, de Minas Gerais e Rio de Janeiro, foi deputado federal por dezenas de anos, compondo o grupo histórico da UDN, que, com Afonso Arinos, Aliomar Baleeiro, Carlos Lacerda e outros, desempenhou papel decisivo na história da Segunda República. Ministro da Justiça e membro do Supremo Tribunal Federal, é autor de valiosas obras de direito constitucional, com permanente dedicação à poesia.
Ainda agora, em 1995, como parte das comemorações do cinquentenário do Clube de Poesia de São Paulo, foi publicada uma coletânea de poemas de autoria de cinco advogados, entre eles Oscar Dias Corrêa, merecendo, a meu ver, especial destaque a sua estupenda tradução do poema "Ricordanze", de Giacomo Leopardi.
Quanto a João de Scantimburgo, é ele o melhor intérprete do Brasil da filosofia de Maurice Blondel, o maior pensador católico deste século, tendo escrito dezenas de ensaios de ciência política, sociologia e história das idéias.
Segundo Roque Spencer Maciel de Barros, a sua recente "História do Liberalismo no Brasil" representa a mais completa até agora publicada. Jornalista, foi diretor do "Correio Paulistano" e dos Diários Associados.
No que se refere a Sergio Corrêa da Costa, embaixador do Brasil na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e na ONU, além de seus notáveis estudos sobre nossa história diplomática, escreveu primorosa biografia de d. Pedro 1º, cuja tradução para o inglês atingiu quatro edições.
Finalmente, Alberto Venâncio Filho, membro da American Political Science Association, é antigo professor de ciência política e de direito na Fundação Getúlio Vargas e no Instituto Rio Branco, com significativa contribuição nessas áreas, bem como nas de história e pedagogia, sendo admirável analista da sociedade brasileira, como o demonstra o seu tão comentado livro "Das Arcadas ao Bacharelismo".
Feitas essas retificações, parece-me indispensável breve alusão a quatro fatos que assinalam as transformações pelas quais tem passado a ABL nos últimos anos. Faço, em primeiro lugar, referência à retomada da publicação da "Coleção Afrânio Peixoto", a cargo de Arnaldo Niskier, com edição de obras clássicas há muito tempo esgotadas, como o "Timon Maranhense", de João Francisco Lisboa, e o "Florilégio da Poesia Brasileira", de A. de Varnhagen, além de estudos dos próprios acadêmicos, sendo o 29º volume, o último editado, de autoria de Barbosa Lima Sobrinho, prestes a completar cem anos, como a Academia a que pertence.
De grande alcance foi a iniciativa de Josué Montello, ao exercer a presidência da entidade, restituindo ao Petit Trianon o seu belo visual originário, transformando-o em verdadeiro museu das letras nacionais, a começar pela amorosa reprodução do escritório de Machado de Assis.
Merece realce também a nova fase da "Revista da Academia", sob a direção de João de Scantimburgo, já em seu nono fascículo trimestral, acolhendo trabalhos de acadêmicos e de escritores de todos os Estados da Federação.
Por outro lado, estão sendo assinados convênios com grandes casas distribuidoras para permitir o acesso de maior número de interessados às obras da Academia, vendidas por preços módicos, sendo providenciada, ainda, a reedição dos dois volumes relativos à correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Jackson de Figueiredo, um dos momentos mais altos da inteligência brasileira.
Com a criação e a distribuição de novos e valiosos prêmios literários, promovendo cursos e conferências e abrindo suas novas instalações a toda espécie de eventos artísticos e intelectuais, sem abandonar jamais seu perseverante empenho na salvaguarda e adequada atualização de nossa língua, o nosso bem por excelência, que mais se pode pretender da Academia Brasileira de Letras? Que ela abandone a missão que histórica e essencialmente lhe cabe, para passar a exercer atividades outras destinadas à conquista de tão reclamada popularidade, não raro fruto de calamitosas inversões de valores?
Infelizmente, não obstante as atividades supra lembradas -abstração feita da constante produção dos próprios acadêmicos em todos os domínios da cultura, o que sem dúvida representa o ponto essencial-, continua-se a dar relevo apenas ao nosso modesto "chá das cinco", cujo significado maior é o informal diálogo das idéias que ele proporciona.
Anuncia-se que, agora, com a nova presidente, haverá um bolo especial. Será ele bem-vindo, pois, em última análise, o tão ironizado chá das cinco talvez simbolize o grande exemplo que a Academia Brasileira de Letras dá à comunidade nacional, mostrando a possibilidade de uma convivência cordial e amiga entre pessoas das mais diversas formações literárias, ideológicas ou religiosas, quando prevalece o sentido de complementaridade que une todos os bens espirituais, propiciando e assegurando o exercício consciente das liberdades iguais.

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