São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Abandonada, mas não desesperada

MOACYR SCLIAR

A primeira reação dos torcedores abandonados foi de surpresa. Onde estava o ônibus que deveria levá-los de volta? Começaram a procurá-lo pelas ruas, a princípio divertidos, mas logo preocupados e em seguida revoltados: o ônibus tinha mesmo partido, deixando-os ali, em pleno território inimigo. Não é justo, bradavam, viemos aqui torcer pelo nosso time e esquecem de nós.
Passada a raiva, reuniram-se para decidir o que fazer. A primeira providência seria arranjar algum dinheiro, pois estavam todos a zero. Mas como conseguir grana, em caráter emergencial? Aí um deles teve uma idéia: todos eles tinham uma coisa em comum, que era a paixão pelo futebol. Por que não organizar um time e disputar com uma equipe local numa espécie de jogo beneficente?
A solução parecia boa, e eles de imediato puseram-se -literalmente- em campo: conseguiram por empréstimo um estádio, puseram-se a treinar. Em pouco tempo verificaram que não apenas afinavam como torcida, mas também como jogadores. E aí, com auxílio de uma emissora local, anunciaram que estavam desafiando possíveis adversários.
Que não faltavam: vários clubes dispuseram-se a jogar com eles uma ou mais partidas. O jogo foi marcado e um enorme público compareceu ao local. Os Abandonados, como a partir de então ficaram conhecidos, receberam um grande incentivo da torcida e venceram de goleada. Seguiram-se várias outras pelejas; o time surpreendia sempre, pelo arrojo, pela criatividade e sobretudo pelo denodo. "Brigam como se não tivessem outra alternativa", foi o comentário de um cronista esportivo. E não tinham outra alternativa mesmo. A vitória era para eles a única possibilidade admissível.
Em breve tinham se transformado numa equipe profissional. Havia um time de titulares, outro de reservas, treinador, fisicultor, relações-públicas e até presidente -tudo que um clube de futebol deve ter. E a sua trajetória era francamente ascensional: derrotavam os adversários um após outro, primeiro os amadores e logo os profissionais. Chegaram à primeira divisão, a essa altura já contando com um grande quadro de sócios.
E um dia, finalmente, coube-lhes enfrentar o legendário adversário, aquele que os fizera vir a uma cidade distante e que fora, indiretamente, responsável pelo infortúnio e também pela glória. Na concentração, aguardavam o momento decisivo...
É claro que o ônibus não apareceu. Não apareceu e eles não puderam ir ao estádio. Como disse Marx, a história se repete. A primeira vez como tragédia e a segunda como comédia.

Texto Anterior: Delegada pede prisão de acusado de matar irmãs
Próximo Texto: O Rodoanel de São Paulo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.