São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 1996
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Os transplantes hepáticos

ELIAS DAVID-NETO

Tendo em vista a opinião do jornalista Elio Gaspari sobre os transplantes de fígado, publicada na Folha (15/12), a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), que reúne os transplantadores de órgãos do país, sente-se na obrigação de esclarecer o público.
A ABTO tem oferecido alternativas viáveis para aumentar o número de transplantes de todos os órgãos, beneficiando a população necessitada desses transplantes. Esse trabalho estimulou a criação de várias centrais de procura de doadores cadavéricos em todo o país, o que já beneficiou, nos últimos dois anos, 3.400 receptores de transplantes de rins, 270 de fígado, 140 de coração e inúmeros dos demais órgãos.
Esses números são inéditos na história dos transplantes de órgãos no Brasil, e esse trabalho tem encontrado amplo reconhecimento nacional.
A população vem sendo confundida com afirmativas de que não se realizam mais transplantes de órgãos por falta de doadores e de que os órgãos vêm sendo desviados para hospitais privados, em detrimento dos públicos, o que não é verdade. O que existe é uma falta de incentivo à "procura" de doadores, falta de hospitais públicos habilitados a realizar transplantes e falta de transparência na distribuição de órgãos.
Todos os anos, o Estado de São Paulo deixa de utilizar cerca de 1.500 rins e córneas, 600 fígados, 600 corações e pulmões, 600 pâncreas etc., porque se desrespeita a lei que determina a comunicação das mortes encefálicas.
Ainda mais, das 780 comunicações anuais de morte encefálica feitas à Secretaria da Saúde, apenas 175 (22%) desses doadores são utilizados para transplantes, e os demais, perdidos.
O sistema vigente de procura de doadores e de distribuição de órgãos (organizado antes da lei de transplantes), extremamente útil e eficiente por muitos anos, está esgotado e necessitando de mudanças. Por outro lado, mesmo com essa pouca oferta de órgãos, os hospitais públicos que atualmente realizam transplantes de órgãos já trabalham bem perto de sua capacidade máxima.
Observemos o caso específico dos transplantes de fígado realizados na cidade de São Paulo. A equipe de fígado do Hospital das Clínicas da USP tem a prioridade sobre 60% de todos os fígados captados pela Secretaria da Saúde.
No entanto, de acordo com os dados da ABTO, essa mesma equipe realiza somente 46% do total de transplantes efetuados em São Paulo. Portanto, as dificuldades não devem ser relacionadas à falta de doadores.
Uma oferta maior deverá estimular a criação de novas equipes de transplante em outros hospitais, públicos ou não, e suprirá a demanda de transplantes existente em nosso Estado. Para aumentar o número de transplantes, será necessário envolver mais hospitais na sua realização e não destinar todos os órgãos a uma única instituição.
Para equacionar esses problemas, a ABTO convocou, em outubro, 60 transplantadores de todos os centros de transplante do Estado para elaborar uma proposta para melhorar o sistema atual e adequá-lo à lei vigente.
Todas as universidades e os hospitais transplantadores estiveram presentes, elaborando um conjunto de soluções que se denominou "Consenso Estadual para Transplantes", para aumentar o aproveitamento de órgãos dos doadores e definir um cadastro técnico de distribuição desses órgãos.
Na proposta, criam-se as organizações de procura de órgãos (OPO), lideradas por hospitais públicos ou universitários (trabalhando em conjunto com as facilidades técnicas dos hospitais privados), que seriam responsáveis pela educação dos hospitais doadores e pela procura de órgãos em uma região do Estado. Esse trabalho seria monitorado pela Secretaria da Saúde.
Os órgãos conseguidos seriam enviados metade para a lista única estadual e metade para os pacientes daquela OPO, responsável pela captação do doador. A meta: passar de 5 para 20 doadores por milhão de habitante ao ano e transplantar todos os órgãos doados, em qualquer tipo de hospital, mas sempre respeitando o cadastro técnico de distribuição, absolutamente ético e em acordo com a lei.
Essa proposta, adaptada do sistema americano, sugere ainda que um conselho, com presidente indicado pelo secretário da Saúde e com representantes do Conselho Regional de Medicina, do Ministério Público, da Secretaria da Saúde e da comunidade de receptores, fiscalize o sistema e o modifique na medida do necessário. Finalmente, sugere uma lista única estadual e algumas regionais, tudo para viabilizar tecnicamente os transplantes e monitorar a transparência da distribuição.
Esse projeto está em análise na Secretaria da Saúde, sendo também avaliado pela Procuradoria de Justiça do Estado, com quem a ABTO já tem agendada reunião para discutir a sua legalidade. Enfim, um foro aberto a qualquer sugestão que cumpra o mesmo objetivo (aumentar o número de transplantes).
A ABTO cumpre seu papel, apresentando e discutindo com a sociedade o seu projeto de transplantes, que deverá aliviar o sofrimento de milhares de brasileiros aguardando por um órgão nas filas de transplantes no Estado. Esse projeto representa a opinião do maior foro técnico sobre transplantes de órgãos deste Estado, com interesse exclusivo de beneficiar a população.
Evidentemente que qualquer outro projeto poderá ser adotado pela sociedade, mas os transplantadores do Estado de São Paulo têm a obrigação de prover essa mesma sociedade com o projeto em que acreditam.

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