São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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País sem Orçamento

MAILSON DA NÓBREGA

Mais uma vez, começaremos o ano fiscal sem Orçamento aprovado pelo Congresso, que deixa, assim, de cumprir sua principal função. O fato seria inadmissível nos países que levam a sério o assunto.
Ora, a grande fonte de poder dos parlamentos é precisamente o Orçamento. No Ocidente, o processo orçamentário nasceu da disputa de poder entre o Legislativo e o Executivo na Inglaterra, no ocaso do feudalismo. No centro, estava a tributação.
A Carta Magna, de 1216, resultou na reação contra os poderes do rei João Sem Terra. Os contribuintes ganharam o direito de consulta prévia na tributação. A partir daí e ao longo do tempo, consolidou-se o princípio de "no taxation without representation".
Nos séculos 16 e 17, três fatos relacionados com questões fiscais foram marcantes para a construção da democracia moderna: o controle da despesa pública pelo Parlamento inglês e as revoluções americana e francesa.
No Brasil, os movimentos pela independência também tiveram a ver com a tributação. A Inconfidência Mineira foi em parte movida pela revolta contra o dízimo e a derrama.
Nos seus primórdios, o Orçamento constituía mera previsão de receitas e despesas. Neste século, tornou-se instrumento para definir as prioridades nacionais, o rumo da economia e a distribuição de renda.
O Orçamento, ao contrário do que pensam muitos políticos, serve para que o governo exerça três de suas mais relevantes funções sobre a economia e a sociedade -a alocativa, a estabilizadora e a distributiva- e não para cevar bases eleitorais.
Na tradição brasileira, o Orçamento não costuma ser tratado seriamente. Na primeira República, era utilizado para objetivos estranhos à receita e à despesa. As tristemente famosas "caudas orçamentárias" continham até nomeações e promoções de funcionários.
As "caudas" foram extintas com a reforma de 1926. Permaneceu, contudo, a falta de compromisso com a austeridade. Na vigência da Constituição de 1946, as emendas transformavam o Orçamento em território para a expansão desordenada dos gastos.
Daí se originaram dois dispositivos constitucionais, tipicamente brasileiros. O primeiro, da Constituição de 1967, vedou a interferência do Congresso no Orçamento, uma aberração pretensamente necessária a enfrentar a irresponsabilidade anterior.
O segundo, acaciano, integra os textos constitucionais desde a década de 30: o Orçamento só pode conter matéria relativa à receita e à despesa. Na Constituição de 1988, a preciosidade está inscrita no artigo 165, parágrafo 8º.
A castração de poderes do Congresso não foi solução. As pressões de grupos de interesse se transferiram para o Poder Executivo e desaguaram no Orçamento Monetário, que era aprovado pelo Conselho Monetário. Num certo sentido era pior: não havia transparência.
Pelo Orçamento Monetário passavam as despesas relativas a subsídios à agricultura e às exportações. Nele também se originaram, em certas épocas, gastos com financiamento a Estados e municípios e aos bancos estaduais.
Com a democratização, o Congresso recuperou o poder de alterar a proposta orçamentária. Não foi, entretanto, um retorno à situação anterior. A Constituição de 1988 e a rigidez do Orçamento estabeleceram severos limites às mudanças.
É verdade que os parlamentares têm achado um jeitinho para contornar a regra. É o caso da marota reestimativa da receita. Com o aumento artificial dos recursos, abre-se espaço para novas emendas e para aumentar a despesa.
Mesmo assim, o Congresso tem procurado melhorar o processo. Criou barreiras a certas emendas parlamentares. Casos comprovados de corrupção, como o dos anões, mereceram punição rigorosa. Mais um se encontra sob investigação.
Falta muito ainda. Por exemplo, há que vedar emendas paroquiais de natureza estritamente municipal. Elas são incompatíveis com a descentralização de receitas promovida pela Constituição, que beneficiou especialmente os municípios.
Falta assegurar que o Congresso exerça sua função primordial de dotar o país de um Orçamento decente, tempestivamente aprovado. A ação sensata dos líderes, as lições da experiência e a pressão da opinião pública serão fundamentais.

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