São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Mastroianni era a imagem de Fellini

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Foi mais que colaboração. Eles formaram uma espécie de dupla, como Joseph von Sternberg e Marlene Dietrich, Jean-Luc Godard e Anna Karina.
Ao contrário dessas, no entanto, não existia a relação entre musa e criador, criador e criatura.
Desde "A Doce Vida", Mastroianni tornou-se o alter ego do diretor. "Ele sempre recorreu a mim, quando quis se retratar em um filme", disse o ator certa vez.
Em "A Doce Vida", na entrada dos anos 60, Mastroianni tornou-se astro de nível internacional ao fazer o jornalista Marcello. Na verdade, era o boa-vida do filme de 1953, que deixava a província e chegava a Roma.
O "jovem Fellini" dava lugar ao autor maduro. A irresponsabilidade de "Os Boas-Vidas" dava lugar a uma quase disfarçada gravidade.
Essa gravidade manifesta-se de modo mais intenso pouco depois, em "8 e 1/2". Agora Mastroianni é Guido Anselmi, cineasta em crise. Ou seja, Fellini.
O processo se repetirá em outras ocasiões. "Roma" não seria "Roma" sem Mastroianni. E "A Entrevista" não seria completa se Fellini não exibisse em dado momento a cena do banho na Fontana di Trevi: duplo encontro de Mastroianni e Anita Ekberg em 1960 e em 1987. O tempo da vida e o do cinema. A vida que se escoa e permanece como memória.
Tão significativo quanto o de "A Doce Vida", no entanto, é o encontro de "Ginger e Fred", em 1985.
Fellini concebia o cinema como o lugar onde o real duplica-se, oniricamente. Nesse espaço, as coisas perdem sua identidade em favor do sonho ou da memória.
Nesse processo, Mastroianni abandonava o diretor e seus métodos (como o de filmar sem diálogos, encaixando as palavras nos lábios dos atores apenas durante a dublagem).
O diretor, por sua vez, entregava-se ao ator.
Como era de seu feitio, Fellini trabalhou sobre a superposição de tempos (os anos 30, da dupla Fred Astaire e Ginger Rogers, e o presente), de espaços (o do cinema e o da TV), de dimensões (a dupla de bailarinos é não bem uma contrafação da dupla norte-americana, mas um espelho em que a imagem original se duplica e se dissemina).
Nessa história de reencontro, em que revolve o tempo de uma vida (a sua), não foi por acaso que Fellini uniu Marcello a Masina, sua mulher. Assim como o bailarino era a imagem imperfeita de Fred, Mastroianni foi a imagem de um Fellini imperfeito e mortal.
(IA)

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