São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Italiano soube resistir a Hollywood

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há três anos, quando da morte de Fellini, Marcelo Mastroianni recusou-se a fazer declarações, sustentando que tudo soaria banal em comparação à grandeza do diretor de "Amarcord".
O desaparecimento do também imenso Mastroianni, paradoxalmente, parece convidar a movimento contrário.
Se a importância de Fellini dispensava novos comentários, a marca decisiva de Mastroianni no cinema contemporâneo é um enigma a desvendar, muito devido à estratégia do próprio ator de subestimar teorias e interpretações.
Marcelo Mastroianni dedicou sua carreira cinematográfica a romper com o estereótipo de don Juan forjada pelo filme que o projetou internacionalmente, "A Doce Vida" (1959), de Fellini.
Aquele belo ator, alto e esguio, programaticamente dionisíaco, soube resistir às tentações da tipologia fílmica e não se rendeu à capital dessas simplificações, Hollywood. Preferiu tornar-se o primeiro "latin-lover" autocrítico.
Mastroianni forjou no cinema europeu a figura do sedutor pós-feminista, do homem em vertigem frente à ascensão dos direitos da mulher, em busca de um novo pacto dos sexos.
Não é a toa que, imediatamente depois de "A Doce Vida", interpreta o marido impotente de "O Belo Antonio" de Bolognini e o burguês entediado de "A Noite", de Antonioni.
O mesmo movimento levou-o a dar vida a um doce homossexual em "Um Dia Particular" (1977) e a um Casanova envelhecido e desglamourizado em "Casanova e a Revolução" (1982), ambos do essencial Ettore Scola.
Mastroianni foi além, escrevendo com o próprio corpo filmes-ensaios sobre a condição masculina neste final de século como "Ciao Maschio" (1977), de Marco Ferreri, e o subestimado "A Cidade das Mulheres" (1980), de seu duplo Fellini.
Mesmo nas imensamente populares comédias que protagonizou, tipo "Divórcio à Italiana" (1961), de Germi, o ator como que parodia o galã.
Tudo se passa como se a vida comportasse algum prazer, ainda que os conquistadores de Mastroianni jamais se esqueçam que, descendentes de Adão, já foram expulsos do Paraíso.
Poucos atores contemporâneos controlavam tão sabiamente a própria imagem. Quando mais o procuravam enclausurar na imagem de "latin lover", eis que Mastroianni satiriza nos palcos italianos ("Ciao, Rudy", 1966) ninguém menos que o pai da estirpe, Rudolph Valentino (1895-1926).
Antes mesmo do pedágio dos anos cobrar em beleza seu preço, ei-lo humanizando o velho Casanova e, sobretudo, expondo os próprios limites (etários, físicos, técnicos) em "Ginger e Fred" (1985).
Admirador de Jean Gabin, colega de geração de Yves Montand, Marcello Mastroianni superou a todos e se tornou talvez a maior estrela masculina surgida a partir da Europa (da Itália, nem se discute).
Resistiu o que pôde a Hollywood e, ao ceder há quatro anos, o resultado sofrível lhe deu razão. A utopia do "cinema europeu" sofre um rude golpe com sua morte.
Conta a lenda que o cineasta Billy Wilder encontrou o colega William Wyler no enterro de Ernst Lubitsch.
"Que pena! Não mais Lubitsch", lastimou Wyler. Wilder não pestanejou: "Pena é que não teremos mais filmes de Lubitsch".
O diabo é que não haverá mais filmes de Mastroianni para nós que o amávamos tanto.

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