São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Enchentes contratadas

JOSÉ FERNANDO BOUCINHAS

O transbordamento do rio Tietê na semana que passou é uma amostra do inferno que o paulistano deverá enfrentar nos próximos meses. Em declaração à Folha (5/12), o secretário estadual de Recursos Hídricos, Hugo Marques da Rosa, placidamente reconhece esse fato. A população da cidade, que não dispõe de veículos anfíbios ou equipamento de mergulho, quer saber quem é responsável pelas calamidades anunciadas. Não é difícil matar a charada.
Senão vejamos. O rio Tietê, por cruzar inúmeros municípios da região metropolitana, deve ter sua capacidade de vazão controlada pelo governo estadual. Sendo um curso d'água de pouca declividade, depositam-se no seu leito, a cada ano, 2 milhões de metros cúbicos de material de aluvião e detritos, que precisam ser permanentemente retirados, para garantir a sua capacidade de escoamento das águas pluviais, cujo volume se multiplica nos períodos de chuva.
O trabalho de desassoreamento do rio é realizado desde a década de 20, com esse propósito. Há dois anos esse serviço não é feito, e, por essa razão, de janeiro para cá o rio transbordou 18 vezes, enquanto que, no período 1992/1994, com precipitações muito mais intensas, não ocorreu um extravasamento sequer.
Além de anúncios da "descoberta" de métodos de desassoreamento que representariam mirabolantes reduções do seu custo, na prática há dois anos nada vem sendo feito.
Prova disso é o que está ocorrendo com o financiamento japonês de 49 bilhões de ienes. As negociações desses recursos entre o governo do Estado e o Japão foram concluídas no início de 1993, tendo a autorização para assinatura do contrato ficado pendente no Senado até o início do ano passado.
Há um ano e meio o contrato foi assinado, e, até agora, nem sequer a contratação das empresas encarregadas do gerenciamento do programa foi efetivada. Entre as obras previstas está o aprofundamento da calha do Tietê, entre o Cebolão e a barragem Edgard de Souza, importantíssima para reduzir a incidência de transbordamentos do nosso rio.
É óbvio que o desassoreamento não é solução, a longo prazo, para o problema. Enquanto não se sustar o crescimento das áreas impermeabilizadas, mediante a ocupação racional do solo urbano, a quantidade de água que aflui ao Tietê continuará aumentando.
Não há como culpar a Prefeitura de São Paulo nem os governos anteriores pelas recentes enchentes. Pelo contrário, o alagamento que ocorreu agora no vale do Anhangabaú deveu-se ao refluxo da água pelo aumento dos níveis do rio Tietê. É o princípio dos vasos comunicantes em ação.
É preciso que o governador acorde o secretário de Recursos Hídricos, pois o que a população quer é o problema resolvido. A ela não interessa quais são os tais novos métodos de desassoreamento, descobertos depois de dois anos de meditação e que parecem ser inaplicáveis.
Ninguém quer servir de cobaia de nenhum gênio da lâmpada, pois, enquanto ele não aparecer com alguma idéia viável, continuaremos a ter perda de vidas, prejuízos patrimoniais e conturbação no já difícil cotidiano de todos nós. Não dá para esperar até 1999, como quer a Secretaria de Recursos Hídricos, para minorar um problema cuja solução a cidade conhece há 80 anos: desassorear o Tietê. Até agora, contratadas mesmo só temos as enchentes.

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