São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 1996
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Equilíbrio de Pertence

WALTER CENEVIVA

Mesmo o cidadão mais distante das teorias sobre a composição do Estado sabe que existem prefeitos, governadores, presidente da República, vereadores, deputados, senadores. Sabe, também, que há juízes. Pode até nem conhecer o nome de uma só dessas pessoas. Frequentemente não conhece. Pouco importa: sabe da existência de três espécies de autoridades, uma que manda no governo, uma que faz leis e outra que julga as pessoas.
O conhecimento de tais elementos é comum porque foi incorporado à informação sobre a estrutura jurídica do Estado há dois séculos e meio. Depois de uns bons 15 anos dedicados à realização da obra, desde sua concepção até a redação final, o barão de Montesquieu publicou "O Espírito das Leis", na qual, completando uma evolução do pensamento que vinha desde antes de Cristo, com Aristóteles, e que passara, entre outros, por John Locke, sistematizou o exercício do governo entre três instituições distintas, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Tanto quanto eu saiba, todas as Constituições do mundo se guiam, hoje, pelas idéias de Montesquieu. Foram consolidadas originariamente na Constituição dos Estados Unidos e na declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. A Carta Magna do Brasil observa o paradigma ao dispor, no artigo 2º, que os poderes da União, independentes e harmônicos entre si, são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Todavia o paradigma está superado. Dou exemplos brasileiros de superação. Numa região metropolitana como a de São Paulo, Rio ou Porto Alegre, o exercício de governo nunca é exclusivo dos referidos poderes, em suas áreas territoriais nem no espaço interno das capitais nem em nível regional dos núcleos que a compõem. Em outro exemplo, a Constituição colocou fora dos três Poderes clássicos o Ministério Público e a advocacia. Com referência constitucional, mas sob ótica diversa, lembro a comunicação social, reconhecida, há muito tempo, como o quarto Poder.
Não é só por isso que a independência e a harmonia dos Poderes passaram a ser um mito difícil de compreender e de realizar. Na estrutura atual, o Executivo tem mais área de manobra para manuseio dos meios de comunicação -elemento essencialíssimo nos dias que correm- e para o controle das finanças públicas. Prepondera assim sobre o Legislativo e o Judiciário. Este se queixa permanentemente da discriminação de que se diz vítima. Ao mesmo tempo raramente dá adequada resposta aos agravos que sofre. A fala crítica ao Executivo do ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, fugindo do habitual silêncio obsequioso da magistratura -no qual esta persiste sob a desculpa de que não deve envolver-se em política-, é elogiável. Os titulares do Executivo praticam ilegalidades, que geram débitos, mas querem calotear os credores. São contumazes nesse vício. Apanhados em falta, abusam dos meios de comunicação para se queixarem dos juízes. O erro mais frequente da magistratura é o de, nesses momentos, compor com os abusadores, em troca de alguma vantagem funcional ou institucional. Pertence foi uma exceção digna, contida, mas firme.
A tripartição dos Poderes está superada na virada de milênio. A rigor, não satisfaz os requisitos da verdadeira democracia, consistente no governo do povo, pelo povo. Deve encontrar novas soluções doutrinárias e práticas. Enquanto o objetivo não for alcançado, cada um dos poderes deve saber defender sua independência substancial. Com equilíbrio, mas com firmeza.

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