São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 1996
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O quinto milênio da China

RUBENS RICUPERO

Quando as cinzas de André Malraux estavam sendo transferidas para o Panteão, lembrei-me não do ministro gaullista da Cultura que embranqueceu a fachada da Notre Dame, mas do jovem piloto aventureiro engolfado pelo sinistro torvelinho da guerra civil chinesa.
Dois livros simbolizaram para minha geração a trajetória da China neste meio de século. "A Condição Humana", de Malraux, e "Estrela Vermelha sobre a China", de Edgar Snow.
O primeiro, romântico na inspiração, foi sombriamente realista em transmitir a sensação física de perigo e medo que permeiam o mundo da clandestinidade e da conspiração, a neblina onde se move o exército das sombras.
O segundo, embora em tese uma reportagem objetiva, acabou por ser a fonte principal do mito de Mao Zedong e do comunismo chinês.
É curioso como na raiz dos dois troncos da mitologia revolucionária o século 20 encontramos livros de jornalistas americanos: "Os Dez Dias que Abalaram o Mundo", de John Reed, para a revolução bolchevista, e "Estrela Vermelha sobre a China", de Edgar Snow, para a chinesa.
Em outras palavras, para gente da minha idade, China e revolução eram praticamente sinônimos, e o país evocava ou as convulsões atrozes da guerra civil e da ocupação japonesa ou as promessas extravagantes do radicalismo das comunas e da Revolução Cultural.
Retorno agora, após ausência de quase seis anos, e sofro dois choques. De saída encontro Pequim transformada em gigantesca Cingapura, com engarrafamento de tráfego ao lado de moderníssimos hotéis e bancos cujo "skyline" pós-moderno lembra mais Houston ou Dallas do que a avenida Paulista.
Busco refúgio numa das ruelas escondidas de antiquários e lá, misturadas às antiguidades provavelmente falsas de finadas dinastias, vejo oferecidas a preço de banana as relíquias da última dinastia: dúzias de livrinhos vermelhos, bustos e velhas fotos do presidente Mao.
A linha mudou, mas a revolução continua. Que outra palavra, com efeito, poderia resumir a transmutação de um país que, há 17 anos ininterruptos, cresce à taxa média de 10% ao ano, saltou da posição de 36º para a de 5º maior exportador e 6º maior importador e é o único candidato com alguma chance de rivalizar no próximo século com os EUA e tornar-se a maior economia do mundo em tamanho, embora não em nível de bem-estar?
Para o Brasil, igualmente uma nação-continente, o exemplo chinês oferece uma série de lições. A mais óbvia é que o sucesso não é fruto do acaso nem de uma ingênua globalização capaz de nos dispensar do esforço de criar um projeto nacional.
A fim de passar de US$ 2 bilhões de exportações em 1972 a US$ 150 bilhões agora, foi necessário aos chineses desenhar uma estratégia de comércio exterior que partiu dos produtos intensivos em mão-de-obra, como os calçados baratos e os têxteis, e está, aos poucos, diversificando a pauta com artigos eletrônicos e óticos de maior tecnologia e valor agregado.
Com taxas de poupança e investimento da ordem de mais de 30%, o país gerou a maior parte do capital de que precisava. Atraiu, ao mesmo tempo, a maior parcela dos investimentos estrangeiros destinados aos países em desenvolvimento (US$ 38 bilhões de um total de US$ 100 bilhões em 1995).
Só que, em vez de se concentrar no mercado interno por meio da aquisição de supermercados ou fábricas de biscoito, esse capital foi orientado para converter a China numa gigantesca plataforma de exportação para as transnacionais. É por isso que, em 1994, o total do comércio externo das filiais chinesas das transnacionais atingiu US$ 87,8 bilhões, mais do que o comércio exterior do Brasil, Indonésia ou da Rússia.
A experiência chinesa mostra, em seguida, que a inserção de um país-gigante na economia globalizada deve ser feita ao longo de etapas controladas, devido à complexidade de lidar com problemas de escala e disparidades.
A China preferiu o gradualismo à terapia de choque testada em outros países socialistas e ainda não completou o processo, ao qual falta enfrentar o desafio de uma dicotomia estrutural. Cedo ou tarde, o setor das empresas estatais terá de resolver o problema dos custos criados pelo número excessivo de empregados e pela assistência social a eles dispensada. Em compensação, o país se poupou a desastrosa contração da economia por anos a fio, o aumento da mortalidade, a desagregação e o gangsterismo da ex-URSS.
A terceira e mais importante das lições é a drástica redução do número de pessoas vivendo em pobreza absoluta. Há 17 anos, 1 em cada 4 chineses estava nessa situação. Hoje, conforme ouvi do primeiro-ministro Li Peng, a proporção caiu para 1 em 24, pouco mais de 5%. Os salários reais primeiro duplicaram para depois triplicarem.
Nos carnavais da minha infância se cantava uma marchinha que dizia: "Chinês, só come uma vez por mês". Nada mais falso em nossos dias. Come-se aqui o tempo todo na infinidade de restaurantes ao ar livre. As pessoas estão todas vestidas adequadamente para o inverno, as crianças são robustas e saudáveis.
É sempre uma tentação fácil apontar com o dedo para o muito que falta a fazer no terreno econômico ou político. Mas, antes de criticar, deveríamos perguntar quantos países teriam conseguido dar vida decente a 1,2 bilhão de indivíduos? No Brasil, por exemplo, será que poderíamos dizer o mesmo?

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