São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 1996
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Crônicas resgatam insolência de Bilac

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Rio de Janeiro está cada vez mais sujo. Há ruas que têm a vegetação das florestas virgens, e outras que pela sua porcaria fazem lembrar as ruas porquíssimas de Fez. Nos aterros que se estão fazendo no cais, vão, de cambulhada, com a terra, cadáveres de burros e de cachorros. E toda a cidade cheira mal. E os poderes municipais cuidam em plantar no meio dela um Teatro Normal -flor de arte e civilização no meio de um atoleiro."
As frases acima foram escritas há... 100 anos. Fazem parte de uma das crônicas de jornal de Olavo Bilac, reunidas agora no livro "Vossa Insolência", organizado por Antonio Dimas, professor de Literatura Brasileira na USP, e editado pela coleção "Retratos do Brasil", da Companhia das Letras.
Imagens como "flor de arte e civilização no meio de um atoleiro", que parecem tão próximas a quem vive hoje nas grandes cidades do país, já seriam suficientes para indicar o interesse do livro. Lendo-o, temos em vários momentos a sensação de que, no Brasil, a história não se repete, mas gagueja.
Mas não é só isso. O interesse de "Vossa Insolência" é ainda maior quando se lembra que Olavo Bilac, o poeta parnasiano, foi uma das maiores vítimas, senão a maior, do movimento modernista brasileiro.
Ridicularizado, identificado com tudo aquilo que a primeira rodada do modernismo iria rejeitar e condenar ao lixo, Bilac sobrevive hoje nas apostilas de cursinho. Pertence ao museu das letras nacionais, não fala mais à imaginação, nem tem vínculos com a cultura viva.
É essa imagem cristalizada que o livro organizado por Dimas pretende de certa forma desmanchar. Não se trata, é óbvio, de exumar coisas terríveis como a "Oração à Bandeira", mas, antes, de trazer à luz as suas crônicas, o lado, por assim dizer, fugaz e pouco conhecido da obra de um autor que ficou estigmatizado como exemplo máximo de eloquência oca, do nacionalismo tacanho.
No lugar de Machado
Colaborador de vários jornais por quase 20 anos, Olavo Bilac (1865-1918) teve seus melhores momentos como cronista nas páginas da "Gazeta de Notícias", diário carioca de Ferreira Araújo, tido como um dos responsáveis pela modernização da imprensa na época.
Bilac começa a escrever na "Gazeta" em 1890, mas só em 97 é convidado para assumir o espaço que era de Machado de Assis, já então considerado por todos o maior escritor do país.
Tarefa delicada, segundo afirma Dimas na introdução. "Mais do que simples substituição, essa escolha (por Bilac) significava nova orientação para aquela seção do jornal, que dizia adeus à ironia oblíqua e se entregava à mordacidade eventual."
Ao contrário de Machado, que raramente errava, Bilac tinha, nas palavras de Dimas, "o olhar bisbilhoteiro e nem sempre certeiro". Suas crônicas, "ideologicamente irregulares", fato compreensível para quem "não se pautava por um credo único, religioso ou político", têm no conjunto o efeito de uma "linha sinuosa que ora aponta para soluções reacionárias, identificadas como o sistema vigente, ora para sua contestação".
Nos seus melhores momentos, Bilac embaralha as fronteiras entre contestação e reacionarismo. Um exemplo disso é a crônica "Prostituição Infantil", em que a sua verve retórica funciona a pleno vapor. A crônica, de 1894, termina assim:
"Enfim, todos nós temos mais o que fazer. E talvez a sorte melhor que se possa desejar hoje em dia a uma criança pobre -seja uma boa morte, uma dessas generosas mortes providenciais, que valem mais que todas as esmolas, todas as bênçãos, todos os augúrios felizes e... toda a comiseração dos cronistas."

Livro: "Vossa Insolência"
Organização: Antonio Dimas
Preço: R$ 20,50 (415 págs.)

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