São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 1996
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Um recorde falacioso

JOSÉ ROBERTO ARRUDA

No mundo da política, as versões muitas vezes sobrepõem-se aos fatos. Boatos, sofismas, meias-verdades, interpretações subordinadas a interesses oblíquos são difundidos sem o menor compromisso com a realidade.
Uma das versões alardeadas no Brasil, nos últimos tempos, é a de que o governo Fernando Henrique tem sido o mais fértil na edição de medidas provisórias.
O número de MPs atribuídas a ele é realmente enorme: 1.028, contra 505 de Itamar Franco, 160 de Fernando Collor e 147 de José Sarney. No subtexto da versão encontra-se a mensagem de que o governo é autoritário e antidemocrático, já que legisla sem respeito à vontade do Congresso.
Portanto FHC é campeão absoluto da edição do famigerado instituto legal, certo?
Errado.
Das 1.028 medidas provisórias baixadas pelo governo Fernando Henrique, 964 foram reedições.
Importa saber quantas originais foram editadas pelo presidente. Nesse aspecto, o único que importa, o atual governo foi o que editou o menor número de medidas provisórias: foram apenas 64 em quase 24 meses (média mensal de 2,66), contra 141 do governo Itamar Franco (27 meses, com média mensal de 5,4), 87 do governo Fernando Collor (30 meses, média de 2,9), e 125 do governo José Sarney (período de 17 meses de vigência da nova Constituição, média mensal de 7,35).
De acordo com o texto constitucional, a medida provisória tem validade por 30 dias, período durante o qual deve ser votada pelo Congresso Nacional. Não apreciada nesse prazo, precisa ser reeditada (o mesmo texto é reapresentado ao Legislativo) para continuar a produzir efeitos.
O presidente teve que reeditar 964 MPs porque o Congresso não as votou dentro do prazo legal, devido a obstruções, ao reduzido tempo para seu exame e ao acúmulo de matérias em pauta.
Para que se tenha uma idéia da extensão do problema, basta dizer que há medidas provisórias reeditadas mais de 40 vezes.
Um exemplo: a MP 1.481, baixada em junho de 1993 pelo ex-presidente Itamar Franco para disciplinar o Plano Nacional de Desestatização, continua a ser reeditada há 43 meses.
A persistir esse quadro, o próximo presidente da República poderá não lançar uma única medida provisória nova e ainda assim será recordista em recorrer a esse dispositivo legal, pois terá que reeditar as MPs que não forem examinadas a tempo pelo Legislativo.
Resta examinar a razão da existência da MP. Ela foi criada pelo artigo 62 da Constituição Federal, em obediência à tendência parlamentarista que emanava de todo o seu texto. Essa tendência fez com que fossem retiradas do Executivo inúmeras atribuições e prerrogativas características do presidencialismo, transferindo-as para o Congresso Nacional.
A medida provisória surgiu como mecanismo compensatório dessa perda de poderes, para que o Executivo não se visse privado da necessária agilidade para administrar os negócios públicos -agilidade essa incompatível com a natural amplitude de tempo necessária ao processo de tomada de decisões no Legislativo.
Lamentavelmente, o parlamentarismo foi derrotado durante a Constituinte. As distorções que hoje se verificam no processo legislativo brasileiro decorrem da circunstância de os dispositivos típicos desse sistema de governo terem permanecido no texto da Carta Magna.
Esse quadro exige revisão e reparos.
Há dois caminhos, não excludentes: primeiro, prosseguir nas reformas constitucionais em andamento, para que devolvam ao Executivo atribuições que devem ser suas no regime presidencialista; segundo, acatar sugestão do senador José Fogaça, para que o Congresso Nacional possa de fato analisar as medidas provisórias a ele remetidas, dilatando prazos e concedendo ao Parlamento condições objetivas para exame aprofundado das matérias nelas contidas.
É injustificável, porém, jogar sobre as costas largas do Executivo a responsabilidade por tais distorções.

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