São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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Só Esso dá a seu jornal o máximo?

MARCELO LEITE

Jornalismo de qualidade pode ser uma coisa simples, como trabalho de formiga. Tome o grande caso da semana, um furo da Folha que foi a manchete de anteontem: "Esquema negocia concessão de rádios". Uma denúncia anônima, repórteres preparados, astuciosos e persistentes -e o país inteiro fica sabendo que continua tudo como dantes no quintal das comunicações, apesar de todas as boas intenções tucanas.
Elvira Lobato e Josias de Souza fizeram um excelente trabalho. O caso pode até não alcançar efeitos e repercussão comparáveis à denúncia que envolveu o deputado Pedrinho Abrão, mas é notável. Seu mérito maior talvez seja o de pôr novamente a Folha no rol dos jornais que dão furos (reportagens exclusivas) importantes, do qual andou meio afastada.
"Que seja o início de uma longa e fértil safra", anotei na crítica interna de sexta-feira. É possível fazer um bom jornal sem furos, mas um grande jornal, só com eles.
Prêmio Esso
Os críticos mais contumazes da Folha se apressarão a concordar, lembrando que o jornal não foi contemplado em nenhuma das categorias do famoso Prêmio Esso, divulgado esta semana. Se você só a lê a Folha, não ficou sabendo, porque ela não noticiou.
A questão aqui não é (só) de desempenho jornalístico. A Folha faz restrições ao Esso e criou seu próprio prêmio, interno. O diretor de Redação, Otavio Frias Filho, considera declinante o prestígio da premiação e diz ter indícios de que ela obedece mais a critérios políticos do que propriamente de mérito.
Em tempo: a Folha não proíbe seus jornalistas de inscreverem-se para o Esso. Segundo a secretária de Redação Eleonora de Lucena, apenas "estimula" a participação no Prêmio Folha.
Ninguém pode negar, porém, que o Esso prossegue como prêmio jornalístico de maior prestígio no país, por inércia ou qualquer outra razão. E também é certo que nada há de injusto no prêmio principal deste ano, conferido à série de reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia publicada no jornal "O Globo" (de Adriana Barsotti, Amauri Ribeiro, Aziz Filho, Cid Benjamim e Consuelo Dieguez).
A Folha erra, na minha opinião, por não noticiar o resultado do prêmio e ao mesmo tempo não explicar as razões de seu distanciamento. Em primeiro lugar, porque transparência é uma de suas mais caras palavras de ordem. Depois, porque com isso corre o risco de ver prevalecer a versão de que não recebe o Esso por incompetência.
Haja fígado
Outro tema que deu o que falar na semana foi a denúncia de "privatização" de fígados doados para transplante, feita domingo na coluna de Elio Gaspari na Folha e no "Globo". É um assunto dos mais delicados, quando chega à imprensa. Segundo especialistas, esse tipo de denúncia se reflete instantaneamente no número de doações, diminuindo-o.
Grosso modo, o caso se resume a uma disputa entre o grupo do Instituto do Fígado do Hospital das Clínicas de São Paulo e outros sete, no Estado, capacitados para realizar essa cirurgia mais que complexa. O primeiro, liderado por Silvano Raia, fica hoje com a maioria dos fígados disponíveis.
Os grupos rivais propuseram modificar o sistema atual de captação e distribuição dos fígados entre as equipes, num documento intitulado Consenso Estadual para Transplantes de Órgãos. Foram acusados de querer furar a fila única de recepção, desviando metade dos raros fígados para pacientes particulares, que pagam até R$ 200 mil pela cirurgia.
Um escândalo. Foi, pelo menos, essa a versão que prevaleceu no início da semana. Aos poucos, a discussão do problema foi deixando claro que ele é mais complexo.
A manutenção do "status quo" figadal, dizem os adversários de Raia, pode também significar a manutenção de um sistema terrivelmente ineficiente de captação de órgãos para transplante: só 175 das 780 comunicações anuais de mortes encefálicas no Estado resultam em doações.
O primeiro alerta do ombudsman sobre a possível unilateralidade do noticiário foi dado na crítica interna de terça-feira. Na quarta, repeti que o jornal não estava conseguindo esclarecer a questão da ineficiência.
Na quinta, enfim, anotei que o jornal reequilibrava-se, com a publicação de um artigo de Elias David-Neto, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), na prestigiada seção Tendências/Debates da pág. 1-3.
O presidente da ABTO escreveu que a equipe de Raia realiza 46% dos transplantes de fígado de São Paulo, embora tenha primazia sobre 60% dos órgãos doados. Não faria ainda mais cirurgias por estar perto de sua capacidade operacional, e não por carência de fígados.
Útil ao debate
Muitos dos argumentos de David-Neto já tinham sido apresentados ao ombudsman por outro médico, Maurício Fernando de Almeida Barros. Ele integra uma das oito clínicas paulistas capacitadas para esse tipo de transplante, a Pró-Fígado (privada). Na terça-feira, Barros tinha enviado por correio eletrônico um longo arrazoado, rebatendo ponto por ponto a coluna de Elio Gaspari.
Como é hábito na Folha, os questionamentos foram enviados ao colunista, por intermédio da Direção de Redação. Gaspari enviou no mesmo dia a seguinte resposta:
"1) Ele (Barros) tem opiniões fortes a respeito da política de transplantes. Não são as minhas.
"2) Ainda que tenha corrigido alguns dados de minha nota, isso não alterou meu ponto de vista.
"3) Foi útil receber essas notas. Ajudam a entender a argumentação de uma proposta da qual discordo.
"Acredito que a divulgação dos dados que ele menciona pode ser útil ao debate."
O caso Bienal
No último dia 9, a Ilustrada publicou reportagem dando conta de um ato de vandalismo contra a obra "Torsos", de Andy Warhol, na Bienal. A exposição se encerrara no dia anterior. Pelo menos duas semanas antes, uma visitante mais entusiasmada tinha aplicado um beijo cheio de batom sobre um dos pênis retratados pelo papa do pop.
A reportagem da Folha reconhecia logo no terceiro parágrafo que a informação já tinha sido publicada no concorrente "O Globo", ainda que sem precisar a data (1º/12) e o local (coluna "Swann"). Outra omissão, muito mais grave, impediu o leitor de saber que o furo na realidade tinha sido do jornal "Hoje em Dia", de Belo Horizonte.
Um dia antes do "Globo", o crítico Morgan da Motta tinha noticiado o ataque em primeira mão. Embora isso fosse do conhecimento da Folha, o crédito devido não foi dado na reportagem. A justificativa da Ilustrada é que não estava disponível nenhum exemplar do "Hoje em Dia" para comprovar o furo, informação fornecida por telefone pelo próprio crítico.

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