São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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O resgate histórico de um grande homem: Pery Beviláqua; O subversivo ...; ... e o patriota, na voz do juiz; EREMILDO, O IDIOTA; O sem-patrulha; A prova do vestibular da PUC tirou 10; Plebiscito; Lavoura tucana

ELIO GASPARI

O resgate histórico de um grande homem: Pery Beviláqua
É do advogado Evaristo de Moraes Filho uma das melhores idéias deste ano e um dos melhores propósitos para o próximo. Ele quer resgatar a memória histórica do general Pery Beviláqua (1899-1990). Sua vida foi uma aula, e seu esquecimento é uma lição dos medos insensatos que a História provoca.
Em 1961, quando Jânio Quadros renunciou, Pery comandava a tropa de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Evitava pronunciar o nome de João Goulart à mesa, mas quando soube que os três ministros militares vetavam-lhe a posse, passou a chamá-los de "oficiais rebelados". Tinha atrás de si a 6ª Divisão de Infantaria. Jango ficou-lhe eternamente grato e nomeou-o comandante do 2º Exército, com base em São Paulo.
Como seu negócio era a lei, trombou com as alianças esquerdistas do janguismo e pediu a dissolução do Comando Geral dos Trabalhadores, uma central controlada pelo Partido Comunista. Chamou-o de "serpentário de peçonhentos inimigos da democracia". Perdeu a eterna gratidão de Jango e foi comandar uma mesa no EMFA (Estado-Maior das Forças Armadas).
Menos de dois anos depois Goulart estava deposto. Muitos generais que não tiveram a coragem de dizer em casa metade do que Pery dissera em público tomaram conta do país. Não era o seu regime. Passou a criticar a interferência militar na política e a defender a restauração democrática.
Por nacionalista, condenou a política da nova ordem e perdeu a eterna gratidão do poder. Do EMFA foi mandado para uma mesa menor, de ministro do STM (Superior Tribunal Militar). Lá, tornou-se um intransigente defensor dos perseguidos políticos.
Despertou tanto ódio que seus inimigos, por pura malvadeza, botaram-no para fora do tribunal poucos meses antes de sua aposentadoria por limite de idade. Era o decano das forças armadas brasileiras, com 54 anos de caserna. Cassaram-lhe as condecorações militares. Logo a ele, que em 1936 fora o primeiro major a receber a Ordem do Mérito Militar.
Chamou a ditadura do Ato Institucional nº 5 de "sementeira de ódio" e se tornou um defensor da anistia ampla, geral e irrestrita, quando essas palavras não eram ditas nem em casa pelas lideranças da oposição. Depois da anistia, Pery foi informado que poderia recuperar as medalhas cassadas. Bastava que as pedisse por escrito. Respondeu que preferia cortar a mão a assinar um requerimento para ter de volta coisas que não solicitara e que lhe haviam sido tomadas sem motivo justo nem legal.
Pery morreu em 1990, com quase 91 anos.
Os documentos de sua vida foram preservados pela família. Estão hoje na Casa de Benjamin Constant, fundador da República e seu avô. Lá, uma equipe de abnegados pesquisadores resgatou o manuscrito de um habeas corpus que o general concedeu em 1966. Fora requerido por Evaristo de Moraes, em benefício do professor Fernando Henrique Cardoso, acusado de crime cuja pena podia custar de 10 a 30 anos de cadeia. (Abaixo estão trechos da acusação e do voto de Pery.)
A Casa de Benjamin Constant guarda também o original do pacto de sangue assinado em 1889 pelo tenente Joaquim Inácio Cardoso, comprometendo-se a lutar pela República. (No dia 15 de novembro, ele acompanhou o major que entregou a d. Pedro 2º o ato de banimento da família imperial.) Era o avô do atual monarca. Guarda também as patacas de duas das três condecorações que tomaram ao general Pery.
O habeas corpus dado ao professor Cardoso é um detalhe na grande biografia de Pery. Se o nome do general Beviláqua for recolocado nos livros das três ordens, FH não estará retribuindo um favor. Estará devolvendo ao Exército a figura histórica de um chefe militar que viveu para ele, para a lei e para o país. Seu esquecimento não é vingança, mas primarismo.
Afinal, quando tiraram Pery do STM, não foi a ditadura quem se livrou de um general que defendia presos políticos. Foi ele quem se livrou dela.

O subversivo ...
Fala a promotoria, em 1966:
"O denunciado Fernando Henrique Cardoso, (...) encontra-se foragido do país desde 16 de abril de 1964. (...) Valendo-se da cátedra, utilizou-se da mesma como veículo de aliciamento e deformação de mentalidades de grande número de estudantes que, amanhã, serão professores.
Datam de 1951 suas atividades subversivas (...). Foi membro do Conselho de Redação da Revista Fundamentos, órgão da imprensa vermelha. Foi Tesoureiro do Centro Paulista de Estudos e Defesa do Petróleo, entidade dirigida pelos comunistas."

... e o patriota, na voz do juiz
Responde o ministro General Pery:
"Entre as acusações ao paciente, (...) figura a de ter sido tesoureiro do Centro Paulista de Estudos e Defesa do Petróleo, o que constitui na realidade, um legítimo padrão de honra para qualquer brasileiro. A campanha a que se consagraram em todo o país tais centros (...) tomou o caráter de verdadeiro plebiscito, (...) somente comparável, em sua beleza, à Campanha Abolicionista. (...) A Petrobrás, com todos os seus portentosos êxitos, foi a sua consequência, e o seu magnífico resultado evidencia quão acertados foram os esforços dos patriotas que a ela se consagraram.
Este processo contra professores universitários é uma vergonha para os nossos foros de país civilizado; é uma ignomínia acusar, sem a mais leve prova, de crime de alta traição um cidadão e, ainda trazer à colação, como parte do libelo acusatório, o 'crime' de ter sido 'tesoureiro do Centro Paulista de Estudos e Defesa do Petróleo, entidade dirigida pelos comunistas'.
Este ignominioso processo deve, quanto antes, ser arquivado, cessando o seu prosseguimento, por inépcia da denúncia e por falta de justa causa. Concedo, pois, a ordem impetrada."

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota. Soube que o Brasil não aceita a proposta de abolição das tarifas de importação de computadores a partir do ano 2000. Soube também que um computador de mesa desses que se vêem por aí custa uma sobretaxa de 30% sobre seu valor de venda.
Descobriu que se vendem nos supermercados as melhores marcas americanas de comida para gatos. Cada latinha com pouco mais que uma refeição custa R$ 1,70. Eremildo aprendeu que a comida de gato americana entra no Brasil pagando 8% de imposto de importação.
O idiota imaginou um brasilianista do próximo século estudando o tipo de sociedade que se projetava na política tarifária do primeiro reinado de FFHH. Descobrirá um governo que protegia o paladar dos gatos quadrúpedes e restringia o acesso dos bípedes aos computadores.

O sem-patrulha
O professor Simon Schwartzman, presidente do IBGE, deu uma aula de elegância acadêmica ao mundinho de patotas e patrulhas da cultura nacional.
Escreveu, com seus colegas Claudio Moura Castro e João Batista Araujo, um artigo com críticas ao sistema universitário brasileiro. A certa altura, para exemplificar a decadência das pesquisas em universidades, citou o Instituto Tecnológico da Aeronáutica e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), como centros de excelência em estudos avançados.
Um dos fundadores do Iuperj, e até hoje uma de suas principais figuras, é o professor Wanderley Guilherme dos Santos, com quem Schwartzman mal tem relações, coisa que não esconde. Sua elegância esteve em não esconder o mérito do trabalho da instituição a que pertence Wanderley.

A prova do vestibular da PUC tirou 10
Brilhou uma luz na praga do vestibular. Ela surgiu no exame da PUC de São Paulo, onde 25 mil jovens disputaram perto de 5.000 vagas. Desde o ano passado, a PUC mudou os conceitos básicos de suas provas, indo buscar mais raciocínios e menos decorebas.
Aplicaram-se três provas com duração de quatro horas cada uma. Só uma pedia respostas de múltipla escolha. Nas duas outras as respostas eram dissertativas. Isso dá muito mais trabalho aos examinadores, mas permite que se examinem melhor os candidatos. Cada pequena dissertação é avaliada cinco vezes antes de produzir uma nota.
O melhor momento do vestibular da PUC aconteceu na prova de Física.
Os candidatos tinham que examinar duas ilustrações. Uma era o desenho Cascata (abaixo), do artista holandês Maurits Escher (1898-1972). Mestre da ilusão de ótica, ele construiu um curso d'água que, movendo-se entre duas torres, conseguia subir e descer sem mudar de nível. A outra era uma montanha russa. (O texto informava que o carrinho vai ao alto do brinquedo com a ajuda de um motor. Esclarecia também que a altura das montanhas vai diminuindo ao longo da viagem.)
Pedia-se ao candidato um texto que explicasse, de acordo com os princípios da mecânica, como uma das situações era possível e a outra, não. Além disso, era necessário dar e justificar um exemplo de situação semelhante.
A questão valia 50 pontos, num total de 150 para todo o exame de física. À inteligência da pergunta somou-se um critério saudável de avaliação. O texto dos alunos foi examinado em cinco etapas.
Um candidato começou sua resposta pedindo desculpas, dizendo que não sabia física, e limitou-se a narrar o que estava entendendo do caso. Qualquer pessoa pode usar essa questão para testar seus conhecimentos de física. Basta imaginar o que responderia, levando em conta que o candidato dispunha, com folga, de 40 minutos para pensar e escrever.
Ganhou dez pontos quem escreveu que o desenho de Escher mostra uma situação impossível, porque água não sobe andar de torre. (Não vem ao caso, mas o truque de Escher está na torre da direita. Fisicamente, ela fica um nível abaixo da torre da esquerda. O jogo de perspectiva fez com que ela ficasse também no mesmo nível.)
Agora, a montanha russa. Ganhou mais dez pontos quem escreveu que o carrinho desce por gravidade. Como há uma perda de energia durante a queda, cada corcovo tem que ser mais baixo que o anterior. Para levar todos esses dez pontos, o candidato deveria mencionar como essa energia é perdida. Basta pensar um pouco: ela se consome basicamente no atrito do carro com os trilhos e na resistência do ar.
Mais dez pontos para quem descreveu de forma coerente a transferência de energia ocorrida durante a viagem do carrinho. Enquanto desliza por conta da força da gravidade, a uma velocidade cada vez maior, ele troca altura por velocidade. Até agora, a avaliação não exigia qualquer linguagem técnica.
Buscou mais dez pontos o candidato que colocou a cena da montanha russa dentro dos princípios da mecânica, falando das energias cinética e potencial do movimento do carrinho, bem como na sua dissipação em calor e som. Brilhou quem explicou que não é o atrito quem dissipa a energia, mas a sua produção de calor e ruído.
No caso do exemplo, cada um pode inventar o seu.
Um, bem simples, é o de uma bola atirada do alto de um edifício, que, a cada movimento de subida e descida, vai a alturas cada vez menores. Isso sucede por conta da resistência do ar e da perda de energia a cada impacto com o chão.
Estima-se que metade dos candidatos passou bem pelos três primeiros critérios, levando pelo menos vinte dos trinta pontos disponíveis. Os 50 pontos ficaram para um grupo que não parece ser menor que 10% ou maior que 20%.
Quem respondeu com zelo e com a preocupação de colocar o seu saber no papel, foi bem. Quem sabia menos, mas sabia alguma coisa, conseguiu um pedaço dos 50 pontos pela sua capacidade de pensar, não pelo que conseguiu decorar.
Há por aí muita banca de vestibular que deveria fazer a prova da PUC. Não para testar seus conhecimentos, mas para para aprender a testar o dos outros.
Em tempo: o candidato que pediu desculpas porque não sabia física, talvez achasse que ia tirar zero. Não tirou. Fez pontos, ainda que não se possam revelar quantos.

Plebiscito
FFHH está abatido. As mercadorias colocadas sobre o balcão político da reeleição, somadas às crises surgidas no Congresso, levaram-no a um estado de desânimo, quase de desinteresse em continuar a jogar o jogo da maneira como ele vem sendo jogado.
Se esse estado das coisas e da alma continuarem (o que não deve acontecer, por conta da trégua do Natal), ele tira uma carta da manga.
Essa carta, em qualquer momento, será a convocação de um plebiscito para decidir se deve ou não haver reeleição.

Lavoura tucana
Aconteceu na quarta-feira:
Encontraram-se o ministro da reeleição, Sérgio Motta, e o ministro do balcão, Luís Carlos Santos. Motta perguntou ao seu colega se era verdade que ele estava atribuindo ao secretário das fundações, Eduardo Jorge, o pedido de produção do cadastro de deputados do PPB com contas no Banco do Brasil.
Luís Carlos Santos respondeu que Eduardo Jorge estava "plantando" notícias atribuindo-lhe a responsabilidade pela malfeitoria. Diante disso, defensivamente, plantou-lhe o que lhe plantara.
Motta insistiu. queria saber se tinha alguma prova de que Eduardo Jorge pedira a lista ao BB.
Luís Carlos Santos disse que disso não tinha prova, mas as tinha de que Eduardo Jorge atribuía-lhe a culpa.
Disso resulta que não se pode dizer quem pediu a lista, mas se pode aferir a qualidade do nível em que o assunto foi tratado.

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