São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Musas da dissonância

ARRIGO BARNABÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tanto a Vânia como a Tetê se caracterizam por uma capacidade de afinação e uma extensão vocal pouco comuns na música popular.
A facilidade que apresentam para memorizar e compreender esteticamente sequências intervalores "dissonantes" confere a ambas uma posição privilegiada no universo das intérpretes brasileiras.
A curiosidade fica por conta de Tetê, que sem nenhuma ligação com a música erudita contemporânea, começou a trabalhar comigo em 1980 e realizou gravações memoráveis como "Canção dos Vagalumes", "Jaguadarte" (LP "Pássaros na Garganta") ou "Londrina" (MPB Shell 81).
Aliás, quando Tom Jobim ouviu a gravação de "Londrina", perguntou-me: "Mas essa aí lê música, né?". Eu expliquei que não, e ele se mostrou muito impressionado, não apenas com a extensão e afinação, mas também com a compreensão.
Essa ausência de "cultura musical" em Tetê, longe de comprometer suas interpretações, confere um encanto especial pela espontaneidade, pela natureza simples e sólida de seu cantar. Seu timbre é no âmago, por excelência, brasileiro. Não do Brasil litorâneo (o que às vezes causa estranheza em ouvidos despreparados) e sim do interior, do quintal, do sertão do Brasil, esse timbre selvagem que nos remete a um universo caipira, mameluco, índio.
Já a Vânia, pelo contrário, estudou canto lírico (pelo menos por algum tempo) e era familiarizada com os procedimentos da chamada "vanguarda musical" (conhecia Gilberto Mendes, Willy Corrêa, Berio, Stockhausen etc.)
Fã de Caty Berberian (é visivelmente influenciada por ela), dona de uma voz cristalina, começou pelo experimentalismo ("Clara Crocodilo", "Tubarões Voadores") flertou com a MPB (Eduardo Gudin, Caetano Veloso) e fez um trabalho magnífico com canções de Tom Jobim. Sob a sombra frondosa da árvore sonora de Tom Jobim, Vânia mostra qualidades universais que a colocam ante às principais intérpretes do mundo. Aliás, parece que ela foi feita para cantar Jobim, Gershwin, Berio...
É talvez o mais belo timbre da nossa música. Assim eu me considero um felizardo, pois tive a chance de trabalhar com duas cantoras excepcionais de formações praticamente opostas e que acrescentaram muito ao meu trabalho. Agradeço às duas pelo ar novo e pela capacidade de renovar a mesmice deste nosso velho quintal.

Texto Anterior: A inspiradora estrela da manhã
Próximo Texto: A fábrica de poemas e de sons
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.